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No dia 1º de abril de 1931, a cidade de Cambará recebeu a visita de dois príncipes, que seriam dois futuros reis da Inglaterra: Eduardo VIII e Jorge VI. A visita foi inteiramente organizada por Lord Lovat, proprietário de 535 mil alqueires de terra no norte do Paraná – que mal começavam a ser loteados ao redor da nascente Londrina.
Era, certamente, uma notícia em qualquer sentido. A visita atraiu a atenção da imprensa inglesa, então a mais importante do planeta. Com isso, faziam parte da comitiva real, que percorreu a América, representantes de órgãos noticiosos de todo o mundo. A visita alimentou as redes de informação planetárias da época e, também, a imaginação dos historiadores. Uma pergunta se impôs: o que é mesmo que dois príncipes foram fazer num local tão distante (na época, Cambará era apenas o ponto terminal no sertão de uma ferrovia: dali em diante, era mato)? Todos sabiam que a resposta óbvia era a ligação com Lord Lovat, amigo íntimo dos príncipes e de seus pais.
Este era o ponto – mas sempre faltou o nó. Tentando chegar a ele, quando dirigia as pesquisas para escrever De Olhos Abertos e Pés no Chão – publicado em outubro deste ano em parceria com Gastão Mesquita –, propus um desafio à equipe de pesquisa, ainda nos tempos da Covid: vamos montar um banco de dados separado com as informações da visita?
Não demorou muito e já havia 750 entradas no banco. A viagem dos príncipes, desde seu primeiro esboço de planejamento, havia atraído a atenção inicial da imprensa inglesa. Na esteira da crise de 1929, o movimento da realeza para buscar oportunidades de negócio no que parecia ser o fim do mundo dava leitura. Quando o périplo começou, um batalhão de jornalistas de cada um dos países visitados se incorporava à comitiva.
A recuperação via internet do publicado no mundo rendeu de tudo: foi possível descobrir que o príncipe Eduardo, jogando golfe, fez um hole in one no primeiro dia em solo brasileiro (no Clube dos Ingleses, em Santos); a cor dos ternos que usavam a cada dia; quem eram as parceiras para dançar maxixe. E que, na visita a Cambará, ambos preferiram filmar os animais nas matas em vez de atirar neles, como era a tradição até então.
Esse vasto manancial de informações obtidas na internet acrescentava pouco ao trabalho dos historiadores, sempre preocupados em encontrar nexos mais analíticos para os fatos. A reunião das várias explicações feitas por eles da visita gira em torno dos interesses ligados ao então imperialismo britânico, que estariam sendo atendidos com a passagem pela propriedade do amigo nobre deles. Mas por que Cambará? Depois de meses de pesquisa, não havia realmente uma resposta.
Na esteira da crise de 1929, o movimento da realeza para buscar oportunidades de negócio no que parecia ser o fim do mundo dava leitura
Então veio a consulta à coleção digitalizada da Gazeta do Povo – esta que, a partir desta quarta-feira, dia 17, está disponível para todos os cidadãos paranaenses, com o lançamento do site Memória Paraná, fruto de uma colaboração entre a publicação e a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná.
Ali estava a resposta. O repórter do jornal chegou a Cambará na comitiva do interventor Manoel Tourinho: saindo de Curitiba e preocupado com os interesses dos paranaenses. O interventor era aliado do prefeito e inimigo político do major Barbosa Ferraz, o dono da fazenda na qual se hospedariam os príncipes. Sua primeira reportagem revela claramente o desconforto de Tourinho com a situação: considerou uma ofensa o convite para um jantar na fazenda, pois deixaria de lado a cortesia da recepção pelo prefeito.
Mas cumpriu seu dever e foi receber o visitante em território adversário. Houve um banquete no almoço, mas Lord Lovat não apareceu, alegando doença. Enviou, porém, um emissário para pedir uma reunião discreta com Tourinho. A programação dos príncipes seguiu: eles foram levados para conhecer as matas. Com eles foram os convidados e jornalistas – menos um.
O repórter da Gazeta do Povo se manteve fiel ao que considerava ser o dever de buscar notícias capazes de servir aos interesses dos paranaenses: ficou na sede com o interventor, seguindo seus passos. Esperou numa sala ao lado, mas foi brindado com um furo jornalístico: todo o movimento social era apenas pretexto de Lord Lovat para ter a conversa com o adversário político, que só aparecera ali por obrigação.
Na intimidade, descobriu que a conversa fazia sentido, porque era para tratar de um interesse comum. Lovat tinha uma proposta: por que, em vez de brigarmos, não nos unimos para defender os interesses do Paraná em torno do café? Por que não criar uma exceção para a cafeicultura no estado, num momento em que plantar café no Brasil todo estava proibido por decreto? Lovat articulara um caminho, obtendo apoio em todo o Brasil – menos no Paraná, onde havia suspicácia.
O interventor soube ouvir. Aceitou a aliança com aquele que parecia adversário, pensando no futuro de seu estado. Contou o resultado da conversa para o repórter da Gazeta do Povo, que também achou melhor colocar os interesses do Paraná acima das adversidades da política local. Melhor ainda, tinha um furo – uma manchete sensacional.
Mandou a reportagem, publicada no dia seguinte com a seguinte manchete: “A importantíssima conferência na Cia. Agrícola Barbosa”. Matou a charada do que havia por trás do ato social evidente: boa política feita de maneira discreta. O Paraná pôde plantar café.
E assim a consulta à coleção digital da Gazeta do Povo, que todos podem fazer a partir desta quarta-feira, dia 17 de dezembro, rendeu uma interpretação nova da história, que pode ser encontrada no capítulo 12 do livro De Olhos Abertos e Pés no Chão, escrito em parceria com Gastão Mesquita – toda fundada nas vantagens do jornalismo local atento sobre a massa geral preocupada com o brilho social.
Jorge Caldeira é escritor, doutor em Ciência Política e está à frente do Projeto Memória Paraná.



