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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Almeida Garrett, precursor do romantismo português, faz em seu livro Viagens na Minha Terra, publicado em meados do século 19, uma hoje célebre questão: “E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico”.

Os mais recentes dados sobre a desigualdade e a concentração de riqueza no mundo, divulgados no mês passado pela Oxfam, manifestamente respondem à inquietante pergunta de Garrett. Para alarmar-se, bastam alguns poucos dados. Desde 2015, o 1% mais rico do planeta possui mais riqueza do que 50% da população mundial. Atualmente, apenas oito indivíduos, não por coincidência todos homens e brancos, detêm o equivalente à riqueza de 3,6 bilhões de pessoas. Tal concentração, longe de ser pontual, tem uma longa tendência. Entre 1988 e 2011, por exemplo, a renda do 1% mais rico aumentou 182 vezes mais que a renda dos 10% mais pobres. Thomas Piketty, em seu livro O Capital no século 21, evidencia que a concentração de renda é ainda mais longeva.

A desigualdade é um dos principais elementos de risco global atualmente

Obviamente, não se trata de vilanizar tais indivíduos. Porém, tais dados devem levar, no mínimo, a uma profunda reflexão acerca da estrutura econômica e social vigente. É mais do que evidente que a mesma simplesmente não funciona, para ser eufemístico, para a maior parte da população mundial. Há algo fundamentalmente errado com uma estrutura deste tipo.

Diante disso, um argumento comumente avançado é de que o objetivo central a ser perseguido, enquanto sociedades, deve ser não a redução da desigualdade, mas o aumento da riqueza. Contudo, este é um argumento míope. Ele ignora, por exemplo, que na presente estrutura a produção de riqueza está longe de ser completamente dissociada da manutenção da pobreza. Ignora, também, que a diminuição da desigualdade, e não a simples geração de riqueza, impacta positivamente a sociedade como um todo em esferas como o nível de confiança entre indivíduos, segurança, saúde e educação, dentre muitas outras.

Além disso, é a desigualdade que está intimamente subjacente à construção de um cenário internacional mais instável e inseguro. Por um lado, basta um olhar atento para perceber que a mesma está ligada a fenômenos como o significativo aumento da extrema-direita na Europa, tanto no Parlamento Europeu quanto em diferentes parlamentos nacionais; a recente votação pela retirada do Reino Unido da União Europeia; e a própria chegada de Donald Trump à Casa Branca. Por outro lado, a desigualdade está também vinculada, inclusive até muito mais umbilicalmente, às raízes mais profundas dos conflitos armados e violentos pelo globo.

Por isso, a desigualdade é um dos principais elementos de risco global atualmente. A persistente relevância e pertinência da célebre pergunta de Garrett na atualidade é não somente desassossegadora, como também bastante perigosa ao cenário internacional.

Ramon Blanco, doutor em Relações Internacionais, é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na UFPR.
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