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A primeira década da Lei de Cotas no Brasil
| Foto: Pixabay

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 3º, como objetivos fundamentais da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Diante disso, foi estabelecido pelos constituintes que o Estado detém o dever de aplicar medidas necessárias para combater preconceitos e discriminações, eliminar a desigualdade social, bem como promover oportunidades aos grupos historicamente vulneráveis, para que assim, esse segmento possa ascender socioeconomicamente.

Nesse viés, é indiscutível dizer que a institucionalização de ações afirmativas é um instrumento para o Estado Democrático de Direito atingir a igualdade de fato, tendo em vista as históricas injustiças que ocorreram na sociedade brasileira contra as minorias sociais identificadas como negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência etc.

Em 29 de agosto de 2012, foi promulgada a Lei 12.711, cujo objetivo era  reservar 50% das vagas em instituições federais de educação superior para pessoas que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas, sendo essas vagas preenchidas por pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, além daquelas  com deficiência e sujeitos com renda per capita inferior a meio salário-mínimo.

Em 2022, tal lei completa dez anos desde a sua promulgação. Nesse mesmo marco temporal, o texto traz a previsão de revisão do dispositivo legal ou da sua possível manutenção. Entendemos que a revisão da referida lei deve ser realizada para a inserção de dois pontos de grande relevância que visam ampliar o ingresso de indivíduos marginalizados no ensino público. O primeiro é a inclusão de mecanismos assistenciais para a manutenção dos estudantes cotistas no ensino acadêmico, e segundo, a implementação de medidas para combater as fraudes de candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas sem, efetivamente, pertencerem a esse segmento.

Cumpre mencionar que não basta a inserção de pessoas periféricas no ambiente acadêmico pelo sistema de cotas em si; é necessário oferecer meios para a permanência desses estudantes no sistema educacional. Entre as medidas que podem ser adotadas estão, por exemplo, apoio pedagógico, emocional e até auxílio financeiro para a manutenção dos alunos negros nos institutos de ensino, mitigando, assim, as taxas de evasão escolar por razões financeiras.

A Lei 12.711 também é omissa ao não prever formas de fiscalização para validação da autodeclaração racial. Algumas instituições de ensino superior adotaram mecanismos de segurança como as comissões de heteroidentificação, ou seja, “método[s] de identificação étnico-racial de um indivíduo a partir da percepção social de outra pessoa”. Assim, com o fim de mitigar as fraudes raciais, os candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas no decorrer do processo seletivo para o ingresso ao ensino superior, são analisados por uma comissão a partir de critérios fenótipos e documentais, a fim de diminuir o acesso de fraudadores no ensino superior.

Vale mencionar que mesmo após a implementação da lei de cotas no Brasil, estudos do IBGE mostram que entre 2016 e 2018, a proporção de estudantes negros de 18 a 24 anos de idade cursando ensino superior, passou de 50,5% para 55,6%. Esse patamar, contudo, ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes na população branca de mesma faixa etária nesse nível de ensino .

Empresas privadas, como o Magazine Luiza, por exemplo, após constatar que dos 53% dos profissionais negros inseridos no quadro de trabalhadores da empresa, apenas 16% ocupam cargos de chefia, implementou um processo seletivo de trainee voltado somente à indivíduos negros, sem critérios excludentes como a necessidade de inglês fluente e experiência prévia no exterior. No fim, 19 profissionais foram selecionados e passaram por um processo de capacitação com o objetivo de serem inseridos em cargos de chefia na empresa.

Isso evidencia que, além das cotas universitárias e das ações afirmativas para contratação da população negra, não basta inserir sujeitos à margem no mercado de trabalho elitizado, é necessário também oferecer cursos, mentoria, base financeira e ensinamentos de gestão para o desenvolvimento e aprimoramento desses funcionários, para que assim, no futuro breve, estes possam estar em patamar de isonomia com os demais profissionais.

Outra ação de grande relevância, agora especificamente no âmbito do direito, é o Projeto Incluir Direito, iniciativa do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados, recentemente vencedor da 18ª edição do Prêmio Innovare, na categoria Advocacia, que  fomenta a participação e inclusão de profissionais negros nos escritórios de advocacia. Frente ao abismo racial encontrado nas sociedades de advogados, o projeto visa oferecer aos seus beneficiários cursos com o fim de capacitar os profissionais em formação do Direito para concorrerem a vagas em processos seletivos dos escritórios associados.

É inegável que iniciativas de cunho reparador são de extrema relevância para a inclusão do negro na sociedade, visto que é necessário tratar de forma desigual os indivíduos que vivenciam realidades distintas. Por essa razão, não obstante a importância da igualdade formal estabelecida pela Constituição, é preciso garantir que seja alcançada a igualdade material, a igualdade de fato, para que o objetivo da República seja alcançado e que o princípio da dignidade humana seja sempre sua base. Com isso, no futuro não serão mais necessários instrumentos para a inserção do negro em determinados espaços, pois estaremos em uma sociedade equitativa de fato.

Camila Galvão, Marina Santos e Carla Silva são, respectivamente, sócia, auxiliar jurídica e estagiária do Machado Meyer Advogados.

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