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| Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo

A arte vem, ao longo do tempo, ganhando cada vez mais os espaços do cotidiano. Isso não significa que os museus, teatros, casas de shows e outros espaços artísticos tenham perdido a sua importância na sociedade, mas é inegável que as ruas têm se mostrado como espaço legítimo da arte na cidade contemporânea, seja “revelando” artistas para ocupar outros espaços formais e institucionalizados, ou mesmo formando artistas de rua, que ficam ou que passam pelas cidades, compartilhando seus trabalhos e suas experiências com todos aqueles que têm em suas rotinas diárias a rua e os espaços públicos como elemento comum.

Há uma diversidade de artistas que vivem hoje do trabalho nas ruas. Essa diversidade envolve as linguagens e as formas de manifestações artísticas e também os interesses particulares de cada um. Assim, encontramos artistas viajantes que permanecem por certos períodos de tempo em cada lugar por onde passam e seguem viajando, mas também aqueles que nunca viajaram ou que se apaixonaram por um lugar e ali permaneceram. Independentemente disso, é importante destacar que tais artistas são trabalhadores e a rua se torna, para eles e seus espectadores, um espaço artístico, proporcionando a todos uma nova experiência com o lugar.

O potencial da arte de rua poderia ser mais bem explorado na cidade de Curitiba por meio de políticas públicas afirmativas

Há anos, Curitiba é conhecida pela arte presente nas ruas. Entretanto, a publicação do Decreto 1.422/2018 – que visa regulamentar a apresentação dos artistas de rua na cidade – pode apagar tal característica. O documento, “elaborado por um grupo de trabalho que reuniu representantes da Fundação Cultural de Curitiba, das secretarias municipais de Urbanismo e Meio Ambiente, do Instituto Municipal do Turismo, da Câmara Municipal de Curitiba e da Associação Comercial do Paraná (ACP)”, conforme informações divulgadas no site da Fundação Cultural de Curitiba, nasce de uma equivocada reunião de organizações que ignora os próprios artistas, bem como os demais setores da sociedade civil. Isso ocorre porque eles não estavam representados no processo de elaboração do documento.

Ainda no site da FCC, há a informação de que a construção do documento foi motivada pelo registro de aproximadamente mil solicitações relacionadas à poluição sonora no ano de 2018 por meio da Central 156. Faltou, portanto, aos elaboradores debruçarem-se sobre as demais relações da arte com a cidade. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, o laboratório “Território, Cultura e Representação”, do Departamento de Geografia, vem reunindo estudos sobre a arte de rua de Curitiba desde 2015. Dos diversos relatórios de pesquisa, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado, os resultados têm apontado para uma mesma direção: a arte de rua ressignifica de maneira positiva as paisagens e os lugares.

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No acelerado ritmo do cotidiano ou no caminhar mais lento de dias sem obrigações definidas, quando despretensiosamente encontramos a arte no nosso caminho, nossas experiências com os lugares se tornam singulares. É quando nossas memórias, percepções e sensações colocam em diálogo o presente e o passado. Quando nos sentimos mais humanos e, com isso, podemos olhar ao redor e encontrar a humanidade dos outros. Nesse “estar presente” mediado pela arte, sentimo-nos mais próximos do nosso semelhante e reconhecemos a segurança e o conforto do lugar. Desse modo, as paisagens são marcadas em nossas experiências e as levamos conosco por toda a vida.

O potencial da arte de rua poderia ser mais bem explorado na cidade de Curitiba por meio de políticas públicas afirmativas. Precisamos avançar nessa perspectiva e, paralelamente, reconstruir nosso olhar sobre os artistas de rua como trabalhadores que, com suas produções artísticas, ganham o pão diário por meio da construção de ambientes mais humanos, sensíveis e saudáveis. O Decreto 1.422/2018, que, em essência, busca restringir o espaço, as autorizações e o tempo de permanência dos artistas nas ruas e nos espaços públicos, apresenta-se como uma ferramenta de inibição das manifestações artísticas e espontâneas na cidade. A manutenção desse documento pode contribuir para os lojistas que, com suas incômodas caixas de som na frente de seus estabelecimentos comerciais, tentam chamar para si a atenção dos pedestres. Pode-se vislumbrar que, em um futuro próximo, a manutenção desse regulamento reduzirá o número de artistas nas ruas da cidade, tirará Curitiba da rota dos artistas viajantes e tornará os cidadãos mais vulneráveis aos perigos das ruas, esvaziadas pela ausência da arte que as anima.

Marcos Torres é professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e parceiro do Instituto Aurora.
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