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Felipe Lima

A reação histérica contra o Prêmio Nobel de Literatura dado ao cantor e compositor americano Bob Dylan mostra que o “círculo de sábios” em geral, seja da parte da esquerda ou da direita, desconhece por completo não só as sutilezas da literatura, ou as nuances do cancioneiro popular dos Estados Unidos, mas também a natureza profunda da América – e, portanto, de uma parte significativa da cultura dos séculos 20 e 21.

Querem uma prova? Vejamos a canção Blind Willie McTell, renegada pelo próprio Dylan para o álbum Infidels, de 1983. Contudo, ela é melhor que o disco inteiro – e, por isso, seria lançada depois oficialmente na caixa de inéditos The Bootleg Series Vols. 1 e 2 (1991).

Nela, o personagem principal observa o “desconcerto do mundo” pelas janelas do famoso hotel St. James, que fica em Selma, estado do Alabama, lugar da passeata feita por Martin Luther King à época da luta pelos direitos civis dos negros. Ele tem uma visão que vai além do passado, do presente e do futuro. Olha os homens que sofreram na Guerra da Secessão, observa as mulheres que se vendiam facilmente para malandros, que depois as abandonariam. Respira “o cheiro das magnólias”, misturado com “o som dos chicotes” que laceram a carne dos escravos, tudo em função de um país que ninguém ainda sabia o que seria.

O importante no mundo de Dylan é o modo como a linguagem literária dialoga com uma tradição desconhecida para o “círculo dos sábios”

Parece ser mais um lamento “politicamente correto” sobre o tema do racismo, mas Dylan faz o inesperado (como é o seu costume): todo o cenário descrito é apenas uma imagem que o motiva a meditar sobre o fato de que “Deus está distante em seu paraíso / e que o poder e a cobiça e a nossa semente corrompida é tudo o que parece existir”. Porém, no meio dessa desgraça, há um alento – a certeza de que “ninguém cantou tal tristeza (o blues) como Blind Willie McTell”.

McTell foi a quintessência do bluseiro, um negro cego de nascença no meio de uma América incapaz de permitir a igualdade racial. Entretanto, jamais deixou que tais obstáculos o impedissem de ser um gigante entre seus pares, ao escrever canções antológicas, como Broke Down Engine e Lord, Send Me An Angel (depois regravada por ninguém menos que o White Stripes). A homenagem que Dylan lhe faz não é apenas um desejo de imitação; é, sobretudo, uma emulação completa, em que o Bardo Fanho de Minnesota usa do amálgama entre poesia e música (como bem observou Christopher Ricks, estudioso de T.S.Eliot e Geoffrey Hill, no seu essencial Dylan’s Visions of Sin) para criar um objeto de arte único. Assim, ele supera a influência de McTell, ao abusar das referências eruditas, que vão da Bíblia até John Milton, passando pela “métrica de W.H.Auden”, algo que era comum entre poetas como Seamus Heaney e Joseph Brodsky (a propósito, ambos vencedores do Prêmio Nobel de Literatura).

Só por esses detalhes já percebemos que o mundo de Dylan é uma “república invisível”, segundo Greil Marcus (outro scholar nos estudos dylanescos), em que o importante é o modo como a linguagem literária dialoga com uma tradição desconhecida para o “círculo dos sábios”, mas que é reconhecida pelos verdadeiros artistas que sabem o “tormento da expressão” envolvido na criação de uma obra destinada a permanecer através dos tempos.

No caso do Nobel a Dylan, a ignorância desses senhores a respeito de tais assuntos não é uma bênção, em hipótese nenhuma. Trata-se de uma sina que carregarão por anos, pois mostram que apenas criticaram sobre aquilo que jamais quiseram entender.

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política e autor de “A Poeira da Glória” e “Crise e Utopia – O dilema de Thomas More”.
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