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A seleção genética de embriões e o retorno silencioso da eugenia

A biotecnologia avança em ritmo acelerado, e nem sempre temos tempo de perceber as implicações éticas antes que novas técnicas se tornem produtos no mercado. (Foto: Imagem criada usando ChatGPT/Gazeta do Povo)

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A biotecnologia e avança em ritmo acelerado, e nem sempre temos tempo de perceber as implicações éticas antes que novas técnicas se tornem produtos no mercado. Um exemplo recente é a startup norte-americana NucleusGenomics, que passou a oferecer a pais que recorrem à fertilização in vitro a possibilidade de analisar e fazer seleção genética com base em milhares de previsões genéticas. Segundo a própria empresa, é possível estimar desde riscos de doenças complexas até características físicas e cognitivas, como altura, cor dos olhos e probabilidade de inteligência dentro de certos parâmetros.

À primeira vista, isso pode parecer apenas mais um passo natural do avanço científico. Mas, quando olhamos com um pouco mais de cuidado essa seleção genética, percebemos que estamos diante de algo profundamente preocupante: a transformação de embriões humanos em itens comparáveis, classificáveis e, no limite, descartáveis. A Nucleus vende a ideia de escolher “o melhor embrião possível”. Mas essa lógica, aplicada a seres humanos em estágio inicial de desenvolvimento, é eticamente perigosa.

A biotecnologia pode servir ao bem, mas isso só acontecerá se for guiada por limites éticos claros

A história já mostrou o risco de adotarmos cegamente qualquer tecnologia que promete solucionar problemas humanos por meio de intervenções biológicas. Não é preciso voltar muito no tempo para encontrar exemplos. O neurologista português António Egas Moniz, pioneiro da lobotomia, acreditava sinceramente estar oferecendo alívio a seus pacientes. Sua técnica, então aplaudida no mundo inteiro, rendeu-lhe o Prêmio Nobel em 1949. Hoje sabemos o quanto essa prática foi devastadora: vidas arruinadas em nome de um “progresso” que não resistiu ao teste do tempo.

Esse alerta histórico deve ser levado a sério. Porque, ainda que a seleção genética de embriões use tecnologias mais sofisticadas, a lógica por trás dela se parece perigosamente com ideias que a humanidade já condenou. Quando uma empresa oferece aos pais a possibilidade de descartar um embrião porque ele não tem a probabilidade desejada de longevidade, ou porque apresenta um risco maior de desenvolver doenças, ou até porque não corresponde ao conjunto de características consideradas ideais, estamos diante de uma nova forma de eugenia, agora embalada em linguagem técnica e vendida como escolha pessoal.

Do ponto de vista bioético, a primeira preocupação sobre a seleção genética é a objetificação da vida humana. Embriões não são produtos que podem ser comparados como quem compara eletrônicos. Eles representam vidas humanas em estágio inicial. Ao permitir que pais escolham embriões como quem decide entre modelos diferentes, abre-se espaço para uma visão de ser humano baseada em desempenho e vantagens futuras, não em dignidade intrínseca.

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A segunda preocupação é o impacto social de naturalizar esse tipo de tecnologia. A partir do momento em que a sociedade começa a acreditar que é legítimo descartar embriões por causa de riscos estatísticos, o passo seguinte é redefinir o que significa nascer “aceitável”. Pessoas reais, já nascidas, podem começar a ser vistas como “menos desejáveis” por carregarem condições genéticas que teriam sido evitadas se seus pais tivessem tido acesso a ferramentas de seleção. Isso aprofunda desigualdades, reforça estigmas e cria uma cultura em que a diversidade genética humana é tratada como defeito.

A terceira preocupação é a ilusão de controle. As previsões oferecidas pela Nucleus são estatísticas, não garantias. Não existe tecnologia capaz de prever o futuro completo de um ser humano. Mesmo embriões considerados “superiores” podem enfrentar doenças, perdas, limitações e sofrimentos. E isso porque a vida é imprevisível e complexa por natureza. Reduzir a existência a percentuais genéticos é não apenas impreciso, mas desumanizante – e, em certo sentido, ingênuo.

É evidente que todos desejam filhos saudáveis. Essa aspiração é legítima. Mas há uma diferença enorme entre buscar tratamento, prevenção e cuidado, e tentar controlar, antes mesmo da gestação, quais vidas merecem ou não existir com base em padrões genéticos. Quando cruzamos essa linha, reabrimos silenciosamente a porta para ideias que juramos nunca mais aceitar.

A biotecnologia pode servir ao bem, mas isso só acontecerá se for guiada por limites éticos claros. Avanços científicos sem reflexão moral são perigosos. O caso da NucleusGenomics e seu serviço de seleção genética deveria nos levar a fazer uma pergunta fundamental: que tipo de sociedade queremos construir? Uma que reconhece o valor de toda vida humana ou uma que seleciona apenas as vidas estatisticamente convenientes?

O debate é urgente. Porque, se não houver limites, corremos o risco de descobrir, tarde demais, que a tecnologia que prometia melhorar o futuro acabou corroendo os fundamentos básicos da dignidade humana.

Ramon de Sousa Oliveira é pastor presbiteriano e autor do livro “O Valor da Vida”.

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