Antonio Cassese já defendeu que os tribunais penais internacionais instaurados pela ONU (para a ex-Iugoslávia e Ruanda) sofrem da "síndrome de Nuremberg": repetem os erros daquele tribunal instaurado depois da Segunda Guerra por servirem exclusivamente para julgar os crimes cometidos pelos vencidos, ignorando os crimes cometidos pelas forças vencedoras do conflito (como nos ataques da OTAN contra o Kosovo). Questiona-se se o moderno Tribunal Penal Internacional do Estatuto de Roma (TPI) não sofreria do mesmo mal. Embora o TPI seja considerado o ápice da evolução do Direito Criminal Internacional, alguns dos sintomas daquela síndrome já parecem estar aparentes, pois não se pode deixar de reconhecer que a instituição padece alguns sérios problemas.
Embora seja natural a seletividade do Direito quando são escolhidas as condutas que merecem a sanção penal, no TPI ela existe em outra forma: dentre todos os crimes de sua competência que tenham sido cometidos em determinado conflito, o procurador do tribunal escolhe apenas alguns para serem processados e punidos. Guardadas as proporções, seria como selecionar, dentre todos os homicídios cometidos no mês passado no Brasil, qual deles mereceria ser julgado. O caso Dyilo, por exemplo, foi escolhido por ser teoricamente fácil (havia, em tese, farta prova e colaboração do país envolvido) e porque criaria nova jurisprudência (um caso de crianças-soldado é inédito em tribunais penais internacionais). Mas há outros crimes mais graves ocorridos na República Democrática do Congo que merecem investigação e processamento e que passarão ao largo da atuação do TPI, sem que jamais se saibam os motivos pelos quais o procurador deixou de denunciá-los. Essa é, justamente, a seletividade que preocupa.
Outro problema são as dificuldades práticas do TPI. Sem contar com uma força policial própria (o que pode fazer com que o TPI sofra do mesmo problema do tribunal da Iugoslávia por ter de solicitar ajuda da OTAN para cumprir seus mandados), e, na maioria das vezes, sem contar com a colaboração dos países aonde venha a atuar, o TPI tem dificuldades sérias para fazer valer suas decisões veja-se o caso Al Bashir, ex-líder militar do Sudão e recente candidato à Presidência, onde seria necessária uma guerra para cumprir-se o mandado de prisão expedido contra o acusado caso ele não deixe mais o seu país voluntariamente. Impotência que lembra o caso Pinochet: a comunidade internacional viu o ex-ditador descansar em paz sem jamais ter sido condenado porque o Chile arrastou enquanto pode o processo.
Também é difícil ignorar a carga política que poderia envolver o TPI. Embora seja celebrada a sua independência, o TPI fica sujeito à ingerência do Conselho de Segurança da ONU, órgão político por excelência e que pode tanto determinar o processamento de um caso quanto suspender investigações e processamento de outros. Isso sem mencionar a possibilidade de que o crime de agressão, ainda não explicitado no estatuto do TPI, venha a ser definido pelo próprio Conselho.
Por tudo isso, é conveniente perguntar a que veio essa instituição. Se veio para a proteção efetiva dos direitos humanos, merece cumprimentos. Mas se constituir-se como mera instância simbólica para perseguir dois ou três mal-afortunados com o fim de criar a sensação de potência de que o mundo ocidental e desenvolvido está fazendo a sua parte, então deve sofrer críticas veementes. Um sinal triste se viu no caso Dyilo, quando o procurador do tribunal foi seriamente repreendido pelos juízes por não respeitar as regras estabelecidas pelo próprio estatuto do TPI para as investigações e busca de provas.
Se a conduta do procurador se tornar a regra na instituição, então o TPI, seja ou não a apoteose do Direito Criminal Internacional, será lembrado no futuro como uma pecha na história, ao mesmo tempo, do Direito Penal e do Direito Internacional. Tomado pela síndrome de Nuremberg, não passará de mais um instrumento dos vencedores sobre os vencidos.
Rui Carlo Dissenha é doutorando em Direitos Humanos pela USP e professor de Direito Penal na Universidade Positivo



