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Acessibilidade para inglês ver?
| Foto: Pixabay

Com a pandemia mudou-se a forma de viver – do presencial ao remoto – e novas possibilidades foram abertas, como o atendimento a consumidores e clientes feito quase que em sua totalidade por meios remotos, a fim de controlar a propagação do vírus e evitar aglomerações. Alguns problemas, entretanto, foram agravados com a pandemia e não foram adaptados à nova realidade, especialmente problemas sofridos pelas “populações invisíveis”.

“Populações invisíveis” é uma expressão utilizada para definir parcelas da população que necessitam de maior proteção do Estado para efetivar seus direitos e viver de forma digna. Além de passarem por maiores dificuldades em decorrência de suas condições físicas, psíquicas ou econômicas, somadas ao preconceito cotidiano a elas dirigido, parecem invisíveis na elaboração de leis que, além de proteger, possam equipará-las de forma integral e eficaz a pessoas sem necessidades especiais. A população surda é uma dessas populações amparadas pela Lei 13.146/2015 – também conhecida como “Lei Brasileira de Inclusão” ou “Estatuto da Pessoa com Deficiência” –, mas que não conseguiram a efetivação de seus direitos de forma a igualar sua vida à de pessoas que não possuem deficiência auditiva.

Alguns problemas, entretanto, foram agravados com a pandemia e não foram adaptados à nova realidade, especialmente problemas sofridos pelas “populações invisíveis”.

O serviço 0800 de atendimento a pessoas com deficiência auditiva, por exemplo, é uma das maiores falácias de acessibilidade, cuja existência a maioria da população ignora. Em um primeiro momento, para qualquer pessoa que não tenha familiaridade com o assunto, a existência de tal número traz a sensação de “dever cumprido”, de acessibilidade e inclusão. O que poucos sabem é como o número funciona – e que somente a sua disponibilização não é uma verdadeira forma de acessibilidade aos surdos do país, já que ele não funciona em qualquer dispositivo móvel de telefonia.

Acessibilidade pode ser definida como “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação, inclusive de sistemas e tecnologias, bem como outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida”, conforme o artigo 3.º da Lei 13.146/2015. Ou seja, para um serviço ser considerado como acessível, deve ter possibilidade e condição de alcance para utilização com autonomia pela pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida. O mesmo artigo traz a definição de barreiras à acessibilidade como sendo “qualquer entrave, obstáculo”, e de barreiras tecnológicas como sendo aquelas que “dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias”.

Os “0800 para deficientes auditivos ou de fala” só podem ser utilizados, em sua maioria, por meio de um dispositivo especial de comunicação para surdos, chamado no Brasil de Terminal Telefônico para Surdos (“TTS”) e, em inglês, Telecommunications Device for the Deaf (“TDD”). Esse dispositivo é como um telefone fixo comum, que é ligado a uma tela de texto, no qual é necessária a intermediação, pela operadora, entre o deficiente auditivo e uma pessoa ouvinte. O TTS é um aparelho grande, caro, antigo – criado em 1964 –, não portátil e, com todos esses detalhes, não é nem um pouco acessível. A pessoa com deficiência auditiva que não tem o aparelho não consegue utilizar-se do número e, respectivamente, da “acessibilidade”.

Se é horrível para um ouvinte ficar horas no telefone para resolver um problema ou uma emergência, é ainda pior para aqueles que simplesmente não têm a opção de resolvê-los de forma remota em função de uma falsa acessibilidade, tendo de esperar até o próximo dia útil, em horário comercial, para se deslocar até o estabelecimento e ser atendido. O número 0800 para surdos parece ser disponibilizado tão somente para cumprir com a legislação vigente, já que seu uso é extremamente limitado, e para convencer clientes ouvintes de que o prestador de serviços está incluindo pessoas com deficiência (PCDs) em seu atendimento, e que é um local inclusivo.

Existem tecnologias muito mais avançadas e que funcionariam em um telefone móvel qualquer, que realmente facilitariam a vida de tais pessoas. No entanto, muitos prestadores de serviço, tanto públicos quanto privados, continuam vendendo a ideia de acessibilidade quase como que se fosse um favor feito à população surda.

O Decreto 5.296/2004 conceitua como “pleno acesso” no serviço de telefonia o fato de ela garantir a existência de centrais de intermediação de comunicação telefônica a serem utilizadas por pessoas portadoras de deficiência auditiva, que funcionem em tempo integral e atendam a todo o território nacional. O problema não é a apresentação do dispositivo, e sim entender que a lei já está desatualizada e há, portanto, a necessidade de incluir dispositivos que melhorem a prestação de serviço para dar efetividade à acessibilidade de PCDs com novas tecnologias. Até que isso ocorra formalmente, as instituições deveriam buscar novos meios de atendimento a PCDs que, além de mais baratos, possam até ampliar a cartela de clientes, já que seriam considerados como novidades de mercado e serviços exclusivos, apesar de necessários.

Se foi possível a adaptação de toda uma sociedade a uma pandemia, não há desculpas para postergar a adaptação frente a um problema para o qual já existem diversas opções de solução. É necessário que essa situação seja levada a discussão, para que possa ser resolvida pela sociedade, desde o legislador, órgãos reguladores como o Banco Central, a Agência Nacional de Aviação Civil, a Agência Nacional de Telecomunicações, instituições e empresas – que sabem o valor agregado de poder suprir as necessidades específicas de seus clientes e oferecer um atendimento digno e acessível. Por fim, que a discussão traga visibilidade ao problema e que este possa ser resolvido em todas as áreas de prestação de serviço, de forma não só a cumprir regulamentos e leis, mas a dar, de fato, acessibilidade às pessoas com deficiência auditiva e da fala na sociedade como um todo.

Marcella Cavallin é advogada pós-graduanda em Direito Constitucional e membro da Comissão de Jovens Arbitralistas – CJA/CBMA.

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