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Afinal, o mercado da carne é realmente livre?

A manipulação deliberada de mercados essenciais, como o da carne, não é apenas uma infração econômica: é uma ofensa ética à ordem social. (Foto: Skull Kat/Unsplash)

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As teses de Adam Smith sobre o livre mercado, desenvolvidas em A Riqueza das Nações, influenciaram profundamente o pensamento econômico e as universidades. Para Smith, o valor de uma mercadoria estava relacionado principalmente ao trabalho necessário para produzi-la. Ele concebia o mercado como um sistema que, com pouca, mas não nula, intervenção estatal, poderia coordenar a produção e distribuição de bens por meio da “mão invisível”.

As teses da Escola Americana de Economia Política, que cito aqui para registrar um contraponto a Smith – representada por Leibniz, Hamilton, Carey, List ‒, a qual pregava a necessidade de uma proteção da nascente indústria nacional por meio de tarifas alfandegárias, foram praticamente esquecidas, em forte medida por meio do soft power das universidades, que disseminaram Smith e Marx, mas não as teses dos autores desta escola. Agora, ao que parece, o governo Donald Trump tem sido aconselhado por algum Alexander Hamilton 5.0. Esse um tópico que poderia ser objeto de um artigo à parte, o qual deixo para outra oportunidade.

Por que falo sobre livre mercado? Porque existe uma “vaca sagrada” (com perdão pelo trocadilho) quando se fala de definição de preços da arroba do boi no Brasil, a lei da oferta e da demanda. Com efeito, poucos ousam ir além do conceito-pires ‒ oferta e demanda ‒ para enxergar os verdadeiros definidores dos preços da arroba bovina. Além disso, há o interesse, sobretudo dos países desenvolvidos e industrializados, de que a carne continue sendo commodity, sem qualquer processo de manufatura, como pregaria ser fundamental a Escola Americana de Economia Política. Álvaro Vieira Pinto, filósofo brasileiro tão sofisticado quanto esquecido, tem teses na mesma linha. Para ele, a exportação de matérias-primas é sinônimo de exportação de valor a ser agregado e, sobretudo, exportação de trabalho nacional. Vai se fazer lá fora o que não foi feito em terras brasileiras por trabalhadores e indústria nacionais. Aliás, a organização dos produtores em cooperativas já é um meio de combate aos desequilíbrios que são analisados neste artigo. Voltando ao ponto: o que, ou quem, está usando o mercado como fantoche a ocultar ações de bastidor? Levanto hipóteses a seguir, sem pretensão de esgotar o assunto.

Na prática, a forte concentração do setor frigorífico transforma o cenário da definição dos preços da carne bovina em um quase oligopólio. Poucos grandes frigoríficos controlam grande parte das exportações, dos abates e da precificação. Essas empresas detêm poder suficiente para segurar compras, postergar abates e até mesmo influenciar o mercado por meio da disseminação de informações negativas, como notícias sobre casos de vaca louca, para citar um exemplo. Do outro lado da cadeia produtiva, o pecuarista lida com um produto perecível, com pouca margem de manobra e, na maioria dos casos, sem poder de negociação sobre os preços. O resultado é um mercado desequilibrado, em que os frigoríficos exercem o papel de formadores de preço e os produtores se veem como tomadores.

A manipulação deliberada de mercados essenciais, como o da carne, não é apenas uma infração econômica: é uma ofensa ética à ordem social. Ademais, é um atentado contra a soberania alimentar e uma subversão do princípio do bem comum. Em suma, um atentado à Política com 'P' maiúsculo

Analistas do setor pecuário frequentemente mencionam episódios que indicam manipulação de mercado. Um padrão recorrente envolve o surgimento de notícias sobre casos atípicos de vaca louca justamente em momentos de valorização da arroba. O ciclo costuma seguir o seguinte roteiro: a divulgação de um caso suspeito provoca a suspensão imediata das compras por mercados importantes, como o da China. Isso gera uma queda brusca no preço da arroba no mercado interno. Após a confirmação de que não há risco sanitário, os mercados reabrem. Os frigoríficos, que compraram a preços mais baixos durante o período de incerteza, abastecem seus estoques e retomam as exportações com margens de lucro ampliadas. E geralmente o fazem quando estão com as câmaras vazias e querem comprar na “bacia das almas”.

Como o produtor pode se proteger?Apesar da limitação do poder de barganha individual, os produtores dispõem de estratégias para mitigar riscos e reduzir a dependência dos grandes frigoríficos. Uma das principais é o uso do mercado futuro, como a B3, para travar preços por meio de contratos. Isso oferece maior previsibilidade e proteção contra quedas artificiais de preço. Mas há problemas e manipulações também nesse setor, fortemente influenciado pelos hologramas especulativos do mundo financeiro, os quais são fortemente definidos por ações de alguns grandes players.

Outra alternativa é a diversificação, incluindo atividades como agricultura, produção de leite, genética ou confinamento, o que diminui a exposição ao preço da arroba no mercado à vista. Além disso, iniciativas de venda direta ao consumidor, cooperativas ou até marcas próprias de carne podem fortalecer o poder de negociação dos pecuaristas, ainda que exijam maior estrutura e organização.

O acompanhamento técnico e o monitoramento constante de informações de mercado são essenciais. Antecipar os ciclos de alta e baixa, acompanhando dados de exportações e movimentos da China, pode influenciar decisões estratégicas sobre o melhor momento para vender ou travar preços. Por fim, a organização política por meio de sindicatos e associações, como a CNA, pode pressionar por regras mais transparentes e políticas públicas que incentivem a descentralização do abate e o fortalecimento de pequenos frigoríficos.

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O modo como a B3é “operada” e opera também é alvo de críticas no debate sobre a concentração e a manipulação do mercado. Embora trabalhe como uma bolsa de valores, a B3 lucra com o volume de transações, independentemente do resultado dessas operações para produtores ou investidores. Quanto mais instabilidade e especulação, maior o número de contratos negociados ‒ e, consequentemente, maior a arrecadação com tarifas de serviços. Até aqui, poder-se-ia dizer, nada de errado com as operações em si e seu volume. Há players que agem para que os preços desçam ou subam e a bolsa nada tem a ver com isso.

O problema maior seria, então, que países-chave, como a China, e mesmo grandes frigoríficos, fundos e instituições financeiras têm mais acesso, informação e poder de operação no mercado futuro do boi do que o pequeno pecuarista. Muitas vezes, sinais de queda no mercado da arroba antecedem a divulgação de notícias, gerando suspeitas de manipulação coordenada ou uso indevido de informações privilegiadas. O fator China e suas ações políticas, travestidas de sanitarismo ‒ não há como saber o que é e o que não é cortina de fumaça nas ações chinesas de fechamento de plantas frigoríficas em outros países ‒, bem como grandes players, atuam no mercado para atingir seus objetivos. Com atores tão poderosos a agir para definir o valor da arroba, difícil dizer que os pecuaristas estão em patamar de forças próximo ao dos grandes jogadores no tabuleiro desse xadrez. Trata-se muitas vezes da partida entre o neófito e Kasparov, o famoso enxadrista russo. Ou, para usar outra metáfora, trata-se do diálogo da guilhotina com o pescoço.

O produtor, que lida com o gado no campo, costuma ser o último a ter acesso às informações relevantes e o primeiro a sofrer com as oscilações. Mesmo o mercado futuro, que deveria funcionar como instrumento de proteção, acaba se tornando uma armadilha para aqueles que não dominam profundamente seu funcionamento. A B3, nesse contexto, é acusada de não fazer esforços suficientes para democratizar o conhecimento ou facilitar o acesso dos produtores às ferramentas financeiras disponíveis. Neutra ou vilã? Questão em aberto.

O discurso de que vivemos em um “livre mercado” perde força diante de um cenário em que poucos jogadores concentram tanto poder e no qual há opacidade na circulação de informações, bem como os lucros se concentram em momentos de crise artificialmente fabricada. O mercado de derivativos, que deveria refletir o físico, muitas vezes o antecipa ou o influencia de forma desproporcional, invertendo a lógica normal de formação de preços.

O que o produtor pode fazer?Ainda que a desconfiança seja legítima, é possível agir de forma estratégica. Algumas iniciativas vêm ganhando espaço no campo: a formação de grupos de produtores com inteligência coletiva, redes independentes de comercialização, uso de momentos de pico para criar colchões de segurança e, principalmente, a exigência de mudanças institucionais via federações, cooperativas e entidades de classe. As ações são do campo da estratégia política para evitar exatamente o aumento do poder de quem concentra tanto poder. Trata-se, mal comparando, na prática dos oligopólios, do uso do conceito de conspiração, tão bem trabalhado por Maquiavel nos Discorsi. Maquiavel trata da conspiração política como um fenômeno perigoso, frequente e inerente à luta pelo poder nas repúblicas e monarquias. Para ele, conspirações são ações ocultas, geralmente organizadas por pequenos grupos ou indivíduos, com o objetivo de derrubar quem está no poder, ou mesmo para alterar a ordem política. Tomando aqui o conceito por analogia, trata-se ‒ eis uma hipótese ‒ de manipulação, por “conspiração”, do mercado de carne. Os grandes conspiram e não há rede legal que os coíba.

De fato, há sinais clássicos de manipulação de mercado, disso que aqui chamei, por analogia com a política, de conspiração. Entre os sinais mais frequentes, pode-se apontar o surgimento repentino de notícias negativas em momentos de valorização da arroba. Um exemplo comum, já indicado, é a divulgação de casos atípicos de vaca louca justamente quando os preços ultrapassam patamares elevados e o dólar favorece as exportações. A suspensão imediata das exportações gera um efeito de queda, que logo é revertido após a normalização do cenário sanitário.

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Outros sinais incluem quedas bruscas nos preços sem alteração real na oferta, indicando que frigoríficos podem estar segurando abates para forçar baixa. Há ainda divergências entre os preços no mercado físico e os contratos futuros, o que sugere manipulação do mercado de derivativos para induzir o comportamento de produtores no mercado real.

Também é comum a disseminação de rumores por grandes portais do agronegócio, como supostas retrações do consumo interno ou cortes nas compras da China, sem dados concretos. Por fim, há a estratégia de compra seletiva, em que os frigoríficos priorizam apenas o “boi China” (jovem e rastreado), reduzindo artificialmente a liquidez do mercado comum.

Diante disso, não é um disparate perguntar: existe mesmo liberdade nesse mercado? Quando poucos agentes detêm poder suficiente para moldar expectativas, influenciar narrativas e interferir diretamente na precificação de uma cadeia produtiva estratégica, não estamos mais diante de um livre mercado, mas de uma estrutura de domínio disfarçado, onde a soberania econômica é corroída por interesses privados, ou mesmo de outras nações, travestidos de racionalidade de mercado.

Para compreender a gravidade dessa distorção, vale recuperar algumas teses de São Tomás de Aquino, autor que concebia o governo justo como aquele orientado ao bem comum, sustentado por uma ordem moral em que a justiça ocupa papel central. Inspirado em Aristóteles, São Tomás distinguia entre justiça comutativa, que regula as trocas entre indivíduos, e justiça distributiva, que orienta a distribuição de bens e encargos pelo poder público conforme o mérito ou a necessidade. Ele defendia que a atividade econômica, como toda ação humana, deveria estar subordinada à justiça e ao bem comum.

Quando o mercado deixa de ser instrumento de troca livre e passa a ser manipulado por atores com poder excessivo, rompe-se essa ordem natural da justiça. O preço, que deveria refletir o valor justo da mercadoria, passa a ser resultado de interesses ocultos, ações especulativas e estratégias de concentração de poder. Nesse cenário, não há mais justiça comutativa ‒ o pecuarista não recebe o que é devido por seu trabalho ‒ nem distributiva ‒ pois o sistema favorece a concentração de lucros e o enfraquecimento de um dos players, no caso, o fundamento da cadeia, o pecuarista.

A manipulação deliberada de mercados essenciais, como o da carne, não é apenas uma infração econômica: é uma ofensa ética à ordem social. Ademais, é um atentado contra a soberania alimentar e uma subversão do princípio do bem comum. Em suma, um atentado à Política com “P” maiúsculo. As instituições com vistas ao bom governo, como propunha São Tomás, não podem se omitir diante de estruturas assimétricas que sabotam a equidade e comprometem a dignidade dos que produzem. Portanto, a crítica à manipulação dos mercados não é apenas uma reivindicação de um setor. É, na realidade, uma defesa da justiça, da ordem moral e da soberania política e econômica de um povo.

Luiz Carlos Montans Braga foi professor efetivo de filosofia da UEFS (2018-2025). É doutor em filosofia (PUCSP) e mestre em direito (FDUSP). Autor do capítulo Filosofia, alienação, dominação: Álvaro Vieira Pinto e o conceito de tecnologia, publicado no livro Perspectivas da Filosofia da Tecnologia no Brasil (EDUFPI, 2024) e do livro Da Filosofia à Técnica: ensaios sobre Álvaro Vieira Pinto(no prelo), entre outros artigos e capítulos de livros. Tem pesquisado autores da Filosofia Brasileira, especialmente Álvaro Vieira Pinto e Gustavo Corção.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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