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 | Henry Ray Abrams/AFP
| Foto: Henry Ray Abrams/AFP

Em julho, o filósofo italiano Evandro Agazzi deu entrevista controversa a um jornal carioca. A manchete da entrevista desaponta o leitor, pois repete o mantra epidérmico de nosso tempo: não há absolutos morais! Noves fora as afirmações contraditórias do filósofo italiano (ele diz que eugenia “é condenável”, sem ressalvas; que o aborto é uma “transgressão”, sem senões; que “não se pode matar”, sem exceções, assim mesmo, com um jeitão meio absolutista), o mantra continuou estampando o título da entrevista. Mas quais as dificuldades por trás da nova doutrina de Agazzi? Quais as consequências práticas de um mundo sem princípios morais objetivos?

Um mundo sem critérios morais absolutos seria tão bom de se viver? Certamente, num mundo assim não poderia haver críticas duras às escolhas pessoais de cada indivíduo. Também as crises morais deixariam de acontecer, pois não haveria certo e errado objetivos a infernizar a consciência daquele que agiu mal deliberadamente. E as questões sociais seriam resolvidas pelas normas jurídicas, conhecidas por sua imparcialidade, tempestividade e justiça. Nesse mundo novo também não haveria esse tipo torpe, que corrompe a sociedade: o moralista, que teima em afirmar que há princípios éticos e morais objetivos, apesar da dificuldade de aplicá-los nos casos concretos.

Sob o ponto de vista do facínora, suas atitudes são bastante razoáveis

Mas um problema resta no fim das contas, e poucos refletem sobre ele. Sem quaisquer princípios morais, como ficariam as situações-limite, como o atentado de Nice ou o 11 de Setembro? Ou quem poderia afirmar, sem riscos, que a escravidão é algo ignominioso por natureza? Ou o nazismo? Não seriam essas e outras atitudes como o canibalismo, o incesto e a tortura meras questões culturais, sem nada que seja objetivamente cruel? Se não há princípios morais objetivos, mas apenas condicionamentos sociais, que há de tão grave no desvio de verba ou na corrupção endêmica do país?

Sem princípios que independam da anuência desse ou daquele grupo, não se pode censurar ações como a violência contra a mulher, ou a violência contra uma raça específica, ou contra uma minoria desprotegida. Sendo direto: se não há princípios morais objetivos, mesmo que sejam pouquíssimos, não se pode absolutamente elevar a voz contra quaisquer crimes, por mais hediondos que pareçam. Tudo se reduzirá a um ponto de vista. E, sob o ponto de vista do facínora, suas atitudes são bastante razoáveis.

Mesmo Jürgen Habermas, reconhecidamente ateu, concorda que a sociedade laica não pode ficar incólume ao aguilhão que quer impor aos grupos religiosos. A ela também urge o dever de justificar racionalmente seus próprios pressupostos: “A consciência secular também tem de pagar seu tributo para entrar no gozo da liberdade religiosa negativa. Espera-se dela uma exercitação no relacionamento autorreflexivo com os limites do iluminismo”. E a negação de todo princípio moral não é um atentado ao modo religioso de ver o mundo, mas pura e simplesmente um atentado contra os fundamentos da cultura ocidental, que se sustenta na primazia da razão sobre os interesses pessoais, sobre as paixões desordenadas, sobre o poder político.

Um mundo sem princípios morais objetivos que constranjam as consciências pelo bem que precisa ser feito e pelo mal que deve ser evitado será reduzido ao pragmatismo social. Os indivíduos agirão apenas em razão das punições legais, algo como um simulacro do Brasil de hoje, onde o que vale é o apadrinhamento político, os conchavos das grandes corporações e a força do mais forte.

Robson de Oliveira é professor de Filosofia da PUC-Rio, membro do CTSmart e diretor do Centro Dom Vital.
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