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Nada expõe mais a fragilidade de uma democracia do que o espetáculo de juízes que se julgam donos do poder. A decisão assinada por Alexandre de Moraes contra Jair Bolsonaro não apenas ultrapassa os limites da legalidade, mas também afronta abertamente as garantias fundamentais e o próprio Estado de Direito. A construção jurídica que sustenta as acusações revela um desprezo absoluto pelos princípios constitucionais e um perigoso desvio das funções do Supremo Tribunal Federal, que parece agora disposto a substituir a Justiça pelo arbítrio.
Sob o pretexto de proteger a soberania nacional, Moraes promoveu uma distorção grotesca da lógica constitucional. Converteu críticas políticas em ameaças, reuniões diplomáticas em crimes e publicações em redes sociais em supostas provas de conspiração. Manipulou o ordenamento jurídico para transformar atos legítimos em delitos imaginários, usando a toga não como símbolo de justiça, mas como instrumento de perseguição velada e intimidação política.
A Constituição é taxativa ao afirmar que ninguém pode ser privado de direitos ou sofrer restrições sem respaldo legal e provas concretas. Esse princípio, pilar de qualquer Estado democrático, foi solenemente ignorado. Moraes acusou Jair Bolsonaro de coação, obstrução e atentado à soberania sem apresentar um único fato concreto que desse suporte real a essas acusações. A decisão transformou conjecturas em verdades processuais e suposições em fundamentos jurídicos.
O ministro atribuiu caráter criminoso a manifestações públicas, opiniões políticas e posicionamentos críticos, como se expressar um pensamento divergente fosse suficiente para configurar delito. Essa inversão de valores atenta contra a inteligência coletiva e representa uma ameaça direta à segurança jurídica. Quando o Direito é manipulado para perseguir adversários, o arbítrio se consolida e a liberdade se esvai.
A presunção de inocência, cláusula pétrea da Constituição, foi atropelada sem cerimônia. Ao invés de cautelares proporcionais, o que se viu foi a instrumentalização do Judiciário para humilhação pública e constrangimento político
No caso da alegada coação, a legislação exige a presença de uma ameaça real, concreta, capaz de influenciar ou intimidar. Moraes, entretanto, preferiu enxergar crime onde havia apenas liberdade de expressão. Em vez de aplicar a lei, reinterpretou-a conforme seus próprios interesses e desejos, convertendo opiniões políticas em instrumentos de acusação.
A imputação por obstrução de Justiça, que em qualquer sistema jurídico sério requer atos objetivos de sabotagem ou interferência direta, foi baseada exclusivamente em discursos públicos e manifestações públicas. Palavras ditas em entrevistas ou postagens, por mais polêmicas que sejam, jamais poderiam justificar tal acusação sem a devida prova de atos concretos.
Quanto ao suposto atentado à soberania, a própria lógica jurídica exige a prática de um ato hostil formal, um comportamento que afete diretamente a integridade ou a independência do Estado. Moraes, ao contrário, tratou reuniões abertas, declarações públicas e críticas políticas como se fossem atos de guerra ou traição, extrapolando todos os limites razoáveis da interpretação penal.
Essa escolha deliberada de ignorar a tipificação legal e forçar a moldura dos fatos ao interesse da acusação desmonta qualquer aparência de imparcialidade. O ministro preferiu sustentar uma narrativa conveniente ao invés de se ater ao que exige a Constituição e o Código Penal. Transformou seu julgamento pessoal em fundamento jurídico, o que abre um perigoso precedente para a aplicação seletiva do Direito.
Não satisfeito em desvirtuar os tipos penais, Moraes avançou contra as garantias processuais e determinou medidas cautelares de extrema gravidade. Sem apresentar qualquer prova concreta de risco iminente à investigação ou à ordem pública, decretou a imposição de tornozeleira eletrônica, censura de redes sociais, proibição de contatos e recolhimento noturno, como se estivesse lidando com um criminoso confesso.
O uso dessas medidas deveria estar condicionado à existência de elementos objetivos que demonstrem sua necessidade, mas foram aplicadas como punição antecipada. A presunção de inocência, cláusula pétrea da Constituição, foi atropelada sem cerimônia. Ao invés de cautelares proporcionais, o que se viu foi a instrumentalização do Judiciário para humilhação pública e constrangimento político.
Essas medidas, típicas de regimes autoritários, foram tratadas com a mesma naturalidade de um procedimento administrativo qualquer. O Supremo assumiu para si a prerrogativa de atuar acima da lei, como se seus membros não estivessem sujeitos às mesmas regras que devem respeitar os cidadãos. O abuso foi praticado com frieza, como se fosse algo rotineiro em um Estado democrático.
O poder cautelar, que deveria ser usado com responsabilidade e parcimônia, foi transformado em ferramenta de opressão. Moraes não hesitou em converter o Supremo em um tribunal de exceção, ferindo o equilíbrio entre os poderes e traindo os princípios que deveriam nortear sua atuação. O Brasil assistiu ao avanço do autoritarismo judicial travestido de decisão legal.
O verdadeiro ponto central deste episódio não é a defesa pessoal de Jair Bolsonaro, mas a sobrevivência do próprio Estado de Direito. O que se discute não é um nome ou um caso isolado, mas o desmonte gradual das garantias que protegem todos os cidadãos contra o poder sem limites do Estado. Hoje é Bolsonaro, amanhã poderá ser qualquer um.
Quando um juiz transforma o Código Penal em uma ferramenta política, a Justiça deixa de existir e todos se tornam reféns do arbítrio. O país perde suas defesas institucionais e abre espaço para que o autoritarismo se instale disfarçado de legalidade. Trata-se de uma corrosão silenciosa que, quando percebida, já terá consumido as bases da liberdade.
A Constituição foi vilipendiada de forma pública e deliberada. O Supremo, que deveria ser seu guardião maior, assumiu a função de algoz da liberdade. A toga, símbolo da Justiça imparcial, virou arma de perseguição política. Este episódio marca um ponto de inflexão na história democrática do país, um momento em que o Supremo rompeu com o seu papel constitucional.
Hoje, o alvo escolhido foi um adversário político, um nome incômodo para os donos do poder. Amanhã, será qualquer cidadão que ousar contrariar a narrativa dominante. O arbítrio não reconhece limites e não conhece moderação quando encontra passividade ou cumplicidade.
O país não pode assistir a esse espetáculo de abusos sem reagir. O silêncio diante do autoritarismo é a senha para sua consolidação. Quem hoje se cala ou aplaude por conveniência será, inevitavelmente, vítima desse mesmo sistema amanhã. O arbítrio não escolhe suas vítimas por afinidade política, ele se volta contra todos.
Calar-se é consentir com a morte lenta das garantias fundamentais e com a consagração do abuso como método permanente de poder. Quem não reage agora, legitima o que está sendo feito e compromete o futuro da liberdade no Brasil. O medo não pode ser maior do que a responsabilidade cidadã.
O Estado de Direito não resiste quando a toga vira escudo para o abuso e a Constituição se torna um papel rasgado aos pés da vaidade judicial. O país precisa decidir entre a liberdade e a submissão a um poder que não reconhece limites. Não há meio-termo quando a própria Justiça se transforma em carrasco da liberdade.
Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



