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Uma conversa recente com uma amiga, mentora de comunicação, me deixou inquieto. Em um grupo de WhatsApp com professores e pesquisadores, ela apresentou minha proposta de mentoria universitária. A resposta foi reveladora: "Provavelmente tem público para isso, mas somos contra." Por quê? "O aluno tem que passar pelo processo, tem que sofrer, tem que sentir na pele. Não adianta ficar facilitando."
Eu só cheguei ao PhD premiado em Antropologia pela Universidade de Indiana porque, além de muito trabalho, tive mentores decisivos. Uma tia-avó, doutora por Stanford nos anos 1960, me ensinou o que era o Statement of Purpose americano — três páginas que, no Brasil, se transformariam em um "pré-projeto" de 25. Sem essa orientação cultural, eu não teria sido aceito no doutorado.
Não foi falta de mérito; foi conhecimento estratégico. Durante sete anos, "ralei" tanto quanto qualquer professor brasileiro — ou mais. A diferença é que tive direção para canalizar o esforço.
Grandes feitos da humanidade dependeram de mentores: Platão com Sócrates; o apóstolo Paulo com Gamaliel; Steve Jobs com Robert Noyce; Warren Buffett com Benjamin Graham. O mentor não "facilita" a vida — ele evita que o estudante desperdice energia em trivialidades e aponta o caminho para o que importa.
Essa mentalidade do "sofrer é necessário" reflete uma falha do sistema educacional. É curioso ver alguns docentes rejeitarem a mentoria sob o argumento de que "diminui o mérito", quando, na verdade, ela potencializa o esforço do estudante. Onde está a lógica em preferir que talentos se percam por falta de direcionamento?
Nas universidades americanas, a mentoria é institucionalizada. Fala-se de vida pessoal, adaptação, escolhas, relação com orientadores, projeto de vida. Algumas universidades brasileiras, como a USP e a UFRJ, já experimentam programas de mentoria com resultados promissores.
Mas ainda contamos quase exclusivamente com a figura do orientador — que, em boa parte dos casos, apenas avalia se o capítulo "está bom". Por que não expandir essas iniciativas e nos inspirar em um modelo norte-americano já validado?
Na era da inteligência artificial, qual será o papel do professor que se limitar a transmitir conteúdo ou apenas informar se o capítulo do TCC está bom? A IA já cumpre com eficiência o papel de fornecer conteúdo.
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O valor do professor deverá migrar para a curadoria, a formação do pensamento crítico e a orientação para problemas complexos. Nesse cenário, a mentoria se torna o elo que ajuda o estudante a discernir, analisar e aplicar conhecimento de modo significativo
O mentor não substitui o esforço — ele o direciona. Ajuda o universitário a conectar propósito de vida e formação, ensina métodos eficazes de estudo e auxilia na redução de ansiedades desnecessárias. Sem reformas educacionais, corremos o risco de empurrar milhares de jovens para uma travessia às cegas.
A necessidade de mentores é urgente para corrigir defeitos no sistema educacional — que, infelizmente, em muitos casos não ensina a pensar com autonomia, permanece preso à decoreba e forma profissionais com limitada competência na escrita, na leitura e no estudo de qualidade.
Mentoria não é facilitação; é potencialização. Pode significar a diferença entre sair da universidade perdido ou preparado para transformar a própria realidade. Aceitar que "sofrer no processo" é virtude formativa pode ser apenas uma falsa justificativa que encobre ineficiências históricas.
Precisamos escolher: manter a cultura do "descubra sozinho" — que reproduz privilégios, frustra talentos e normaliza a desistência — ou evoluir para um modelo que desenvolve pessoas.
Ignorar a mentoria é privar estudantes de uma vantagem competitiva essencial para seu bem-estar e sucesso. Ter um mentor qualificado pode ser o diferencial mais relevante da formação, com potencial para redefinir a experiência universitária — e a história do estudante.
Rodrigo Penna-Firme é PhD em Antropologia, mentor universitário e docente dos cursos de Geografia e Ciência da Sustentabilidade na PUC Rio.



