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As distopias estão na boca do povo ao menos desde 1949, ano de publicação da mais famosa delas, 1984, de George Orwell. Como um clássico, que não cessou de dizer o que tem a dizer, na lapidar síntese de Ítalo Calvino, o romance ensaio de Orwell levanta questões que, mesmo mais de setenta anos depois, mantêm enorme atualidade. Dão a pensar. Fazem pensar.
Winston Smith, o protagonista da distopia de 1984, personifica o indivíduo que perdeu sua subjetividade, seus afetos genuínos, sua vida, família, história. O Big Brother, que tudo vê, ouve, controla, representa o Estado-Partido que se capilariza no mais íntimo da vida dos indivíduos, dos “cidadãos”. As aspas são propositais. Na verdade, sequer cidadãos há. O que existe é uma massa amorfa de indivíduos movimentados como marionetes pelo Grande Irmão.
No romance, o governo da Oceânia é administrado por quatro Ministérios, cada um com um nome irônico que é o oposto exato de suas verdadeiras funções. Da paz, responsável pela guerra, que nunca finda. Ministério da verdade (Miniver), responsável pela manipulação da informação e sua publicidade, reescrevendo constantemente os registros históricos para os adequar à narrativa do Partido, além de controlar os meios de comunicação – literatura, filmes, música – e a linguagem, a novilíngua.
O ministério do amor é o responsável pela segurança interna e repressão política. É onde ocorrem os interrogatórios e lavagens cerebrais, como os sofridos por Winston Smith. O da fartura administra a economia e o racionamento de bens. Mantém a população em estado de escassez permanente, mas sempre anuncia estatísticas belíssimas de crescimento econômico. A ironia nos nomes dos ministérios reflete o duplipensar, conceito central da obra, significando que a verdade é travestida de várias camadas, tornando-se opaca. Ao fim, há, em lugar da verdade, as narrativas que servem aos interesses do Grande Irmão.
O romance de Robert Benson é o pai das distopias. Insisto: incrivelmente atual, mesmo tendo sido publicado em 1907, provoca reflexões muito agudas acerca das consequências dos materialismos de variada estirpe e do antropocentrismo radicalizado que, paradoxalmente, retira o homem do verdadeiro centro
Eis, em uma frase síntese pinçada do romance, a tese da distopia proposta por Orwell: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. A teia do poder fabrica a narrativa sobre o passado porque controla o presente. E porque domina a narrativa acerca do passado, forja o futuro. Qualquer semelhança com tempos atuais não é mera coincidência, mas mérito da sensibilidade certeira do autor, que captou os ventos que ainda direcionam a biruta da história. Uma ironia, que se soma à tese do romance, é a de que o Estado atual, como afirma a incontornável jornalista Paula Schmitt, é, muitas vezes, uma espécie de atravessador do grande capital. O controle sobre a vida dos indivíduos é, no fim das contas, a engenharia social dos donos do mundo, que têm seus títeres postos em cargos-chave. Cristina Martín Jiménez também tem belos ensaios sobre o tema.
O que poucos sabem, entretanto, no rol das distopias – indico o pequeno grande livro de Paulo Briguet, O mínimo sobre distopias, que me fez enxergar para além de Orwell e Huxley de Admirável Mundo Novo –, é que o pai de todas elas tem como autor um padre católico e foi escrita em 1906 e publicada em 1907. É uma distopia tão assustadora quanto as de Orwell e Huxley, mas difere no tom e na profundidade sobrenatural dos temas e teses.
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Em O Senhor do Mundo (ed. Sétimo Selo, 2021), a distopia do padre Robert Hugh Benson, católico convertido, antes pastor anglicano, é um soco no estômago de quem vive no conturbado século 21. Quem lê a obra, sem saber que foi publicada em 1907, pensa se tratar de um romance escrito há pouco, tamanha a similitude com questões e fatos recentes. O principal fio da obra é a vinda de Julian Felsenburgh, personificação do anticristo, homem sedutor, intelectualmente brilhante, dono de um carisma inigualável, com carreira meteórica e inteligência política única.
De fato, estabelece a paz mundial e, vindo da América, se torna presidente da Europa. A inspiração de Robert Benson é o livro do Apocalipse de São João. Porém, para além da trama em crescendo que vai mostrando o surgimento e a predominância de Felsenburgh, o anticristo, no mundo, há uma espécie de tese de fundo que é condição sine qua non à vitória – mundana – de Julian. É justamente nesse ponto do romance que surgem as maiores semelhanças com o mundo atual.
No Prólogo do livro, três figuras dialogam. O senhor Templeton, um velho político, idoso com mais de 90 anos, o padre Percy Franklin, com menos de 35 anos e o padre Francis, cuja idade não é revelada, mas que, pelo contexto, deve ser próxima à do padre Franklin. O Prólogo dá o tom desse pano de fundo do romance, é uma espécie de mapa conceitual em forma de diálogo, pois mostra como o materialismo e o culto ao homem, o novo Deus, levam à ascensão de Julian Felsenburgh, figura que enfeixa esses valores e que é considerado um messias de um mundo laico. Esse é o paradoxo.
Um mundo que expulsa o sobrenatural, que persegue a Igreja Católica até o limite, sempre em nome da paz, introduz na política uma figura que é precisamente a satisfação do desejo daquilo que foi soterrado em um mundo laico e materialista, o sobrenatural, e que cultua o homem como um Deus. Trata-se do sobrenatural rebaixado ao mundo e antropomorfizado. E, corolário, uma vez Felsenburgh nomeado O Senhor do Mundo, presidente da Europa, responsável pela paz global, aclamado pelas nações, o já apóstata padre Francis terá um papel fundamental na criação e execução do rito estatal, obrigatório a todos os cidadãos, sob pena de prisão, para a necessária e pedagógica “conversão” por lavagem cerebral.
Na conversa entre os três personagens, no Prólogo-mapa (destaco que os padres Percy Franklin e Francis terão papel central na parte futura da trama), alguns pontos-chave da tese do romance são revelados pelas palavras do Senhor Templeton. Ele afirma: “Tinha havido socialistas antes, mas nenhum como o Gustav Hervé da velhice, [...]. Ele [...] pregava o absoluto materialismo e o absoluto socialismo levados ao seu máximo desenvolvimento lógico. O patriotismo[...] era um vestígio da barbárie passada e o prazer sexual era o único bem seguro. Evidentemente, todos riram dele. Diziam que sem religião não poderia haver motivo algum para as massas manterem a mais simples ordem social. Mas ao que parece isso estava certo. Depois da queda da Igreja Francesa no começo do século e dos massacres de 1914, a burguesia parou para refletir e se organizar, e esse movimento extraordinário começou a sério, impulsionado pelas classes médias, sem patriotismo nem distinção de classe, praticamente sem exército. Óbvio, a maçonaria dirigia tudo isso” (p. 10-11).
A seguir, no mesmo diálogo, o Senhor Templeton complementa: “De forma breve [...] há três forças – catolicismo, humanitarismo e as religiões orientais. Sobre estas últimas não posso prever, embora ache que os sufis sairão vitoriosos. Tudo pode acontecer; o esoterismo está fazendo estragos enormes - e isso quer dizer panteísmo [...] E acredito eu [...] que, humanamente falando, o catolicismo agora irá decair rapidamente. [...] mas, por outro lado, você deve lembrar que o humanitarismo, ao contrário das previsões de todos, está se tornando uma verdadeira religião, ainda que antissobrenatural. Ele é panteísmo; está desenvolvendo um ritual com a Maçonaria; tem um credo, 'Deus é Homem', e assim por diante. [...] Então houve o enorme desenvolvimento da psicologia - tudo claramente contra nós por pelo menos um século. Primeiro, veja só, houve o materialismo, aquele puro e simples que meio que falhou (era rude demais), até que a psicologia veio a resgatá-lo. Agora a psicologia reivindica todo o resto do terreno, e o senso do sobrenatural parece estar incluído aí. Essa é a reivindicação. Não, padre, nós estamos perdendo, devemos continuar perdendo e creio que devemos estar até preparados para uma catástrofe a qualquer momento” (p. 16-17).
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Paro por aqui para evitar spoiler. O fato, pouco conhecido, já indicado, é que o romance de Robert Benson é o pai das distopias. Insisto: incrivelmente atual, mesmo tendo sido publicado em 1907, provoca reflexões muito agudas acerca das consequências dos materialismos de variada estirpe e do antropocentrismo radicalizado que, paradoxalmente, retira o homem do verdadeiro centro.
Talvez não seja casual, mas precisamente decorrência do que constata Benson, a vitória do materialismo e da religião do homem. Religião do homem, é bom registrar, parte do título do livro do padre Álvaro Calderón, Prometeu, a Religião do Homem, no qual o ensaísta esmiúça o Concílio Vaticano II e suas consequências. Talvez também não seja casual, mas exatamente decorrência do materialismo ateu constatado por Benson, que Huxley e seu Admirável Mundo Novo, bem como Orwell e seu 1984, tenham sido as distopias mais celebradas, as quais, ironicamente, “assassinaram” o pai, ou seja, fizeram-lhe sombra suficiente para o tornar quase invisível. De fato, as lentes materialistas, como antolhos em cavalos, não permitem ao homem enxergar o sobrenatural.
Luiz Carlos Montans Braga, doutor em Filosofia, mestre em Direito, graduado em Direito e Filosofia, é autor de artigos acadêmicos nas áreas de Filosofia e Direito e capítulos de livros e coletâneas. Tem pesquisado autores da Filosofia Brasileira, especialmente Álvaro Vieira Pinto e Gustavo Corção.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



