• Carregando...
 | /Pixabay
| Foto: /Pixabay

Um impasse nuclear; um dos líderes está bêbado; o outro é um ser delirante. Os subordinados se viram como podem para evitar o pior. Não, não é um suspense catastrófico hollywoodiano, nem um episódio da diplomacia errática de Donald Trump, mas sim a história de como os EUA e a União Soviética se viram em rota de colisão no Oriente Médio.

A Guerra de Yom Kippur, que durou várias semanas a partir de outubro de 1973, foi um conflito tumultuado entre Israel e uma coalizão de países árabes, liderada pelo Egito e a Síria. Acabou com uma vitória israelense decisiva, mas, 45 anos depois, algumas questões sobre os papéis das duas superpotências da Guerra Fria ainda permanecem.

Agora, novos documentos reunidos e traduzidos pelo Centro Wilson, mostram o Kremlin desarticulado tentando desesperadamente ajudar o Egito, um dos seus “clientes” mais importantes. Durante muitos anos achou-se que o comportamento soviético agressivo no conflito era uma manobra para acabar com a influência norte-americana, ou ganhar acesso ao petróleo ou aos portos de águas tépidas, mas as novas evidências sugerem que foi simplesmente um caso de mau gerenciamento da crise.

Na manhã de 6 de outubro de 1973, tirando vantagem do Yom Kippur (Dia do Perdão), Egito e Síria começaram a coordenar um ataque a Israel, na tentativa de retomar os territórios perdidos na Guerra dos Seis Dias, de 1967. Com o reforço aéreo soviético, egípcios e sírios saíram em vantagem, antes de Israel se recuperar no campo de batalha. Ignorando o pedido de cessar-fogo feito pelo Conselho de Segurança da ONU, os israelenses insistiram.

Novos documentos reunidos e traduzidos pelo Centro Wilson, mostram o Kremlin desarticulado tentando desesperadamente ajudar o Egito

Duas semanas depois, em Washington, enquanto o conflito se desenrolava, Richard Nixon forçou a saída de seu Procurador-Geral e do vice, depois demitiu o procurador especial Archibald Cox. O acontecimento ficou conhecido como o Massacre de Sábado à Noite e desencadeou um verdadeiro fogaréu político. Nixon, vítima de tamanha fúria, foi buscar consolo na bebida.

Tarde da noite de 24 de outubro, o Secretário de Estado Henry Kissinger recebeu uma carta alarmante do Secretário-Geral soviético, Leonid Brezhnev, endereçada ao presidente. Nela, dizia que a situação no Oriente Médio chegara a um ponto perigoso, sugerindo que Moscou e Washington teriam de se unir e agir para segurar os israelenses. E se os norte-americanos se recusassem, os soviéticos agiriam unilateralmente, enviando tropas.

Quando a mensagem chegou, Nixon supostamente se encontrava “indisposto”; Kissinger e o Chefe de Gabinete da Casa Branca, Alexander Haig, decidiram não acordá-lo. Em vez disso, o Secretário convocou uma reunião do alto escalão para discutir a resposta norte-americana – e elevou o nível de alerta nuclear para Defcon 3, o mais alto desde a crise dos mísseis em Cuba.

Os documentos que se tornaram públicos revelam que tal atitude não foi só uma reação à presença naval soviética, cada vez mais maciça, no Mediterrâneo, como há muito se registrava, mas aos relatórios dos serviços de inteligência que mostravam um navio soviético com carga nuclear se dirigindo ao porto egípcio de Alexandria.

A conclusão óbvia foi a de que Moscou, oportunista, estava usando o escândalo de Watergate para abrir caminho às custas de Nixon. Como Kissinger colocou: “Os soviéticos o veem como alguém com a mente não funcional”. As forças norte-americanas ao redor do mundo se puseram em alerta máximo, mas ainda havia muitas perguntas sem respostas: por que Brezhnev haveria de fazer algo assim? Será que não estava só blefando?

Leia também: O Relógio do Apocalipse (artigo de Dinis Gomes Traghetta, publicado em 22 de agosto de 2018)

Leia também: A nova ameaça nuclear (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 17 de setembro de 2017)

Algumas já foram respondidas. Hoje sabemos que a ameaça de envio de tropas não foi a única ideia maluca que teve; no auge da crise, pressionado pelos apelos incessantes de ajuda do presidente egípcio, Anwar Sadat (que eram feitos em plena madrugada), o líder soviético, irado, pediu ao Politburo que considerasse medidas adicionais, como estacionar a frota nacional na costa de Tel Aviv ou permitir ao Egito perpetrar ataques ao interior israelense com foguetes fornecidos com seu aval.

Essas ações agressivas não cabiam, de forma alguma, na abordagem geralmente cautelosa da política externa de Brezhnev. O que aconteceu? Sua agenda diária, tornada pública recentemente, nos conta parte da história.

Desde o início do conflito, Brezhnev passou a trabalhar praticamente 24 horas por dia, fazendo reuniões no Politburo durante o dia, recebendo delegações à noite e falando com Cairo por telefone entre um e outro. Em 22 de outubro, foi para seu vilarejo de caça favorito, Zavidovo, para se recuperar, mas, segundo seus assistentes, ficava acordado a noite toda, inclusive ligando para o Kremlin às duas da manhã. Foi ali que compôs a carta a Nixon e o pedido ao Politburo de subir o tom com medidas mais duras.

A missiva foi enviada, mas as atitudes mais drásticas foram discretamente esquecidas. Alguém na liderança soviética percebeu que o Secretário-Geral estava perdendo o rumo.

Então, em 29 de outubro, o diretor da KGB (e eventual sucessor de Brezhnev), Yuri Andropov, enviou ao chefe uma carta no mínimo curiosa, alertando-o para o fato de que os norte-americanos e Sadat tinham conspirado para fazê-lo trabalhar em excesso, forçando-o constantemente a tomar decisões difíceis. “É sabotagem, pura e simples. Os norte-americanos e egípcios estão querendo forçá-lo a se concentrar apenas no conflito árabe-israelense, causando com isso uma sobrecarga geral, mas principalmente para você”, argumentou.

Leia também: O acordo nuclear com o Irã (editorial de 15 de janeiro de 2014)

Leia também: Trump e o significado da visita a Jerusalém (artigo de Szyja Lorber, publicado em 26 de maio de 2017)

Andropov sabia algo de que Kissinger não tinha conhecimento: Brezhnev se tornara dependente de soporíferos que, em combinação com bebidas alcoólicas, estavam minando sua capacidade de pensar com clareza. Fora informado do vício semanas antes da guerra no Oriente Médio, mas se recusara a interferir; entretanto, o comportamento errático de Brezhnev durante a guerra o convenceu dos perigos da inação. Alguns detalhes nunca foram esclarecidos, mas fica evidente que Andropov e provavelmente outros membros do governo tiveram um papel crucial, ainda que sutil, ao impedirem o líder do país de desencadear uma guerra mundial inconscientemente.

Brezhnev logo recuperou as faculdades mentais; a escalada do alerta norte-americano o ajudou a recobrar a razão. A última coisa que queria era uma guerra nuclear com os EUA por causa de um cliente pouco confiável e armado até os dentes no Oriente Médio.

Logo depois, porém, a União Soviética se viu envolvida em conflitos na África e, em 1979, invadiu o Afeganistão. É pouco provável que Brezhnev, cuja saúde piorava dia a dia, sequer percebesse a gravidade da situação. Quando morreu, em novembro de 1982, o império soviético já tinha ultrapassado todos os limites aceitáveis e se via isolado internacionalmente. E tudo isso aconteceu durante sua administração, ou melhor, letargia.

Há 45 anos, os EUA e a União Soviética conseguiram evitar uma guerra, em parte graças à intervenção de Andropov e outros, mas também, sem dúvida nenhuma, devido a uma sorte imensa dos soviéticos. E se há uma lição que os líderes de hoje devem aprender é a de que uma hora a sorte sempre acaba.

Sergey Radchenko é professor de Relações Internacionais da Universidade de Cardiff.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]