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Manifestantes protestam contra fechamento do comércio e isolamento social no Distrito Federal.
Manifestantes protestam contra fechamento do comércio e isolamento social no Distrito Federal. Imagem ilustrativa.| Foto: Sérgio Lima/AFP

A urgência do coronavírus impõe a adoção de lockdown, sob pena de colapso do sistema de saúde. Tal premissa, em que pese lógica, não é inquestionável. Isso porque é dever da sociedade política, em uma democracia autêntica, debater os tipos, espécies e graus das chamadas “medidas extraordinárias”, à luz de um constitucionalismo motivado e racional que faz da arte da ponderação um elemento decisivo para a justa hermenêutica político-jurídica.

Sabidamente, o Brasil, com suas profundas desigualdades e assimetrias internas, possui realidades díspares e rotinas desencontradas. Nesse contexto, é de intuir que medidas que igualem artificialmente situações desiguais tendam a causar disfunções veementes, mesmo quando praticadas de boa-fé. Por exemplo, se o ideal era que todos ficassem em casa, o pressuposto básico seria que todos tivessem um lar em condições materiais mínimas com reservas de comida e higiene pessoal. Mas como isso seria possível em um país com bolsões de miséria profunda, em locais onde não há lei, saneamento básico, escolas, nem um simples pedaço de pão velho sobre a mesa de jantar?

Sim, decisões de gabinete podem ter ortografia perfeita, embora semanticamente equivocadas. Por assim ser, cabe à política superior ter a capacidade de descer ao chão da vida, enxergar as plurais e difíceis circunstâncias da realidade, dialogar com diferentes, analisar visões opostas, renovar perspectivas, aposentar convicções superadas e, fundamentalmente, ter coragem de decidir e sustentar decisões corretas independentemente de pressões momentâneas.

Ora, é lição antiga que política não é uma ciência exata, pois nas inexatidões da democracia existem pessoas completamente diferentes, mas dotadas de direitos fundamentais inegociáveis. Sobre o ponto, em precedente paradigmático, o colendo Supremo Tribunal Federal, em 2011, na votação da ADPF 187/DF, bem apontou que “o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais”.

Como se vê, quando diante de valores constitucionais de mesma hierarquia, como vida e liberdade (artigo 5.º, caput, da Constituição), cabe à autoridade política bem calibrar a escolha ou critério de decisão pública de forma que eventual preponderância normativa não gere o aniquilamento irresponsável de outro direito fundamental correlato. Ou seja: se, ilustrativamente, em uma situação de inevitável gravidade extrema, a proteção da vida gerar alguma restrição sensível ao livre exercício de qualquer trabalho (artigo 5.º, XIII), é dever da autoridade competente manter íntegro um mínimo de dignidade normativa à liberdade e, ato contínuo, prever imediatas políticas compensatórias aos prejudicados (auxílios indenizatórios, desoneração fiscal, transferência de renda, entre outros), sob pena de inconstitucionalidade material da restrição desmedida.

O constitucionalismo – como experiência viva e pulsante – está intimamente relacionado com o princípio da realidade. A boa lei, antes de sonho ou poesia, é concretude normativa equilibrada e possível. Pergunta-se, então, por imperativo: em um país no qual muitos trabalham de dia para comer à noite, será eficaz uma norma que diga para as pessoas ficarem cordeiramente em casa, ouvindo o roncar de seus estômagos?

Talvez, em países com padrão social mais alto e homogêneo, onde há maior capacidade de renda e poupança privada, tal tipo de proposição tenha maior possibilidade política; todavia, em nações pobres, famintas e miseráveis, a fome devora as maiores e mais belas teorias abstratas. Em tempo, para evitar a importação acrítica de modelos estrangeiros, cumpre destacar que não resolveremos os problemas do Brasil de frente para o Atlântico e de costas para a Rocinha.

Outro ponto relevante diz respeito a práticas governamentais descabidas ou insuficientes com efeitos gravosos sobre as vulnerabilidades do sistema público de saúde. Em outras palavras, após mais de um ano de pandemia, era de se esperar técnicas de rastreamento e testagem massiva em pontos estratégicos, viabilizando a antecipação de procedimentos de contenção epidemiológica. No entanto, a concentração das análises no número de leitos de UTI disponíveis criou um tardio método reativo, no qual o alarme dispara quando o ladrão já está dentro da casa, consumando danos violentos ao sistema de saúde.

Ainda, em época de informações ululantes, o entrecruzamento inteligente de dados econômicos substantivos poderia auxiliar no estabelecimento focalizado de eventuais medidas restritivas necessárias, reduzindo a margem de consequências econômicas negativas, impactos amplos e consequências gerais. Não se trata aqui de apontar culpados; apenas demonstrar que havia e há melhores caminhos políticos a seguir.

Por tudo, o debate sobre lockdown deve ser feito com absoluta seriedade constitucional, analisando-se amplamente as complexas variáveis da desigual realidade política do Brasil. Diante de interesses constitucionais contrapostos de mesma hierarquia, a inteligência brilhante do professor Roscoe Pound sugeriu, em fórmula clássica, que se deveria “assegurar tudo quanto se pode a todos os interesses com o menor sacrifício de cada um deles”. Trata-se, portanto, de estabelecermos uma honesta, construtiva e intensa dialética jurídica poliédrica, longe de se vincular a rasas soluções binárias de meramente abrir/fechar o comércio, escolas e os serviços em geral.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

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