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 | Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Debates sobre a precariedade da saúde pública inevitavelmente resvalam para a necessidade da humanização. Reivindicação justa, apesar de apresentada sob retórica propagandística como meta diferenciada a ser alcançada em programas de controle de qualidade hospitalar.

Em conformidade com o imaginário tupiniquim de que problemas se resolvem com mais leis, a formação humanística do estudante de Medicina já está determinada no artigo 29 do capítulo III da resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina: “(a estrutura do curso de graduação em Medicina deve) incluir dimensõ̃es é́tica e humaní́stica, desenvolvendo, no aluno, atitudes e valores orientados para a cidadania ativa multicultural e para os direitos humanos”. Eis o contexto para o surgimento da disciplina denominada Humanidades Médicas, cujo objetivo é incluir, na graduação, tópicos relacionados à literatura, filosofia e artes.

A desumanização dos profissionais de saúde tem sido atribuída a diversos fatores; os mais frequentemente mencionados são sobrecarga de trabalho, baixa remuneração, interface tecnológica entre paciente e médico, “judicialização” da saúde e reducionismo biomédico (que enxerga a doença, mas não o doente). Se quisermos ultrapassar demagogias e diretrizes burocráticas, precisamos repensar o problema a partir da retomada do conceito de “humanismo”.

O termo latino Humanitas refere-se ao ideal de educação e formação plena do homem para além de qualquer utilidade prática, com base nas “artes liberais”. Logo, humanismo em medicina é um ideal educacional para a formação plena do médico. Entretanto, a crise que se abate sobre as humanidades está diretamente implicada na gênese de três mal-estares presentes na cultura, descritos pelo filósofo canadense Charles Taylor, e que impossibilitam justamente a elaboração cabal da imagem do homem perante si e os outros: o individualismo, a primazia da razão instrumental e a perda da liberdade. De que modo isso aconteceu?

O menosprezo às religiões tradicionais, a valorização da vida voltada a si e o louvor a uma certa espiritualidade desprovida de significado (porque capaz de comportar qualquer definição que se queira dar) amputaram o homem de vínculos com uma realidade que o transcende. A estrutura da realidade, para o medieval, articulava-se pela unidade de Bem, do Belo e do Verdadeiro; atualmente, o Verdadeiro está desacreditado e o Bem e o Belo desintegraram-se em princípios autônomos. Conforme descreveu Martim Vasques da Cunha em A Poeira da Glória, a realidade, regida exclusivamente pelo princípio do Belo, se apresenta sob perspectiva estética – na qual o que importa é a aparência. O real visto como obra de arte permite que cada um seja livre para se modelar como bem entender.

A emancipação da vontade perante qualquer horizonte moral transcendente, que funcionava como quadro de referências capaz de dar significado espiritual às nossas vidas, enredou a ação na necessidade de satisfazer veleidades transitórias.

Desprovido de configurações capazes de atribuir sentidos para práticas morais, o homem se tornou a medida de todas as coisas. Critérios para distinções qualitativas sobre certo ou errado não são mais vistos como necessários. Sob a égide individualista, as ciências humanas apregoam que os fatos inexistem objetivamente, são construídos conforme interesses contingentes. E, se o conhecimento é convenção social, a verdade é convenção sociológica. Valores são reverenciados no altar da isonomia, sustentado pelo politicamente correto, como equivalentes. O ensimesmamento frutífero, vinculado ao cultivo saudável de uma vida interior, perverte-se em autoindulgência empenhada no prazer imediato.

A percepção estética da realidade se reflete no rebaixamento das artes: ou servem exclusivamente à apreciação sensorial do mundo ou são instrumentalizadas para o desenvolvimento de uma “consciência social”, que discrimina a sociedade em vítimas ou opressores. A politização das ciências humanas é diretamente proporcional ao menosprezo pela herança humanista. Os elementos formadores da cultura do Ocidente, que deveriam ser preservados, são repudiados como arbitrários, elitistas, racistas, sexistas.

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Sem horizontes morais transcendentes, a ética das virtudes (preocupação com o “viver bem”, com o que é valioso por si mesmo e digno de admiração) é substituída pela ética da eficiência (preocupação em determinar os princípios para a ação, de modo a “maximizar” os resultados). Dada a inexistência de fatos na realidade “manifesta” (para usar os termos de Wilfrid Sellars), conforme propagado pelas ciências humanas, configura-se a ideia de que as verdades objetivas devem ser obtidas pelas ciências naturais, e a perspectiva moderna passa a privilegiar a “imagem científica” da realidade como única capaz de fornecer sentido existencial. A pressão pela eficiência resulta no que Byung-Chul Han denominou de “sociedade do esgotamento”: o desaparecimento do universo moral transcendente, em vez de conduzir à liberdade, conduz à liberdade coercitiva de uma sociedade disciplinar na qual somos, simultaneamente, prisioneiros e vigias, e cujas exigências por desempenho resultam em cansaço.

Harmonizados, os elementos cognitivo e afetivo, necessários ao ideal de humanismo em medicina, permitiriam ao médico “não apenas compreender a sua ciência, mas também identificar-se com a humanidade daqueles a quem ele serve”, nas palavras de Edmund Pellegrino. Resta saber se as humanidades serão capazes de retomar sua vocação para estudar, preservar e legar o repositório real de conhecimento e moral sobre os quais o Ocidente foi constituído, e auxiliar na difícil e nobre missão de formar o profissional médico como ser humano pleno e tecnicamente habilidoso.

Carlos Almeida Junior, neurocirurgião oncológico do Hospital de Câncer de Barretos, é professor da disciplina de Humanidades da Faculdade de Ciências da Saúde de Barretos (SP).
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