Muita gente desconhece o real significado do sionismo, o movimento político fundado por Theodor Herzl, que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano no território onde historicamente existiu o antigo Reino de Israel. Este movimento surgidono final do século 19, conhecido como sionismo moderno, teve no antissemitismo europeu a principal causa de seu advento.
É provável que para grande parte dos não judeus apenas a partir do antissemitismo é que o sionismo tornou-se conhecido. Alguns, no entanto, seja por ignorância, desconhecimento ou até mesmo por motivos ideológicos, deturpam o sionismo acusando-o de ser racista, por causa de Israel e os palestinos, sem se darem conta de que palestinos não são só os árabes, mas também os cristãos e os judeus que ali viviam desde o Império Otomano. Outros se dizem antissionistas para tentar diferir isso do antissemitismo, este sim uma forma de racismo. Ser antissionista, ou seja, contrário ao direito de os judeus terem sua própria nação soberana e independente na terra de seus ancestrais, é ser antissemita. Não há como dissociar um do outro.
Herzl não foi o primeiro a falar do sionismo, mas foi ele quem elevou o problema das perseguições e racismo aos judeus ao nível de uma questão internacional
O sionismo, no entanto, é muito mais antigo do que Herzl. Seu nascimento veio com a dispersão dos israelitas provocada pelo Império Romano após vencer a Revolta dos Judeus. Durante séculos viveu, o sionismo viveu apenas no meio religioso, junto com a esperança da chegada do Messias para o povo judeu e no consequente renascimento de Israel. Isso fica bem caracterizado nos finais das ceias da Páscoa judaica todos os anos, com a tradicional frase “o ano que vem em Jerusalém”, e esta aspiração é observada entre muitas passagens do Pentateuco e nas orações diárias.
Herzl foi o primeiro judeu que projetou a questão judaica como um problema internacional. “O Estado Judeu”, livro que ele escreveu em 1896, foi a primeira expressão pública, em linguagem moderna, de uma concepção dinâmica e acelerada dessa antiga esperança adormecida na memória do povo por dois mil anos, mostrando que poderia ser cumprida. Mas foram os religiosos que se opuseram inicialmente ao Sionismo moderno de Herzl, porque não contemplava a vinda do Messias. Judeus não ortodoxos estavam divididos em relação à solução de Herzl para o antissemitismo. Uns o consideravam lunático, outros preocupados com o crescimento do ódio aos judeus, principalmente na Rússia, na Alemanha, na Áustria, na Inglaterra e na França, o apoiaram.
Em 1882, Leon Pinsker, um médico judeu de Odessa, perturbado com os pogroms na Rússia (ataques terroristas às aldeias judaicas, com assassinatos, estupros e mutilações, com certa anuência das autoridades czaristas — algo muito semelhante às atrocidades que o Hamas fez no sul de Israel em 7 de outubro), cerca de 15 anos antes de Herzl, fez uma análise perspicaz da situação dos judeus especialmente no império russo, e declarou que o antissemitismo era uma psicose incurável, e que a causa disso era a condição anormal da vida judaica, e que o único remédio para isso era a remoção da causa por meio da autoajuda e da autolibertação. “O povo judeu”— observou Pinsker —“deve se tornar uma nação independente, estabelecida no solo de sua própria terra e levando a vida de um povo normal”. Antes ainda, Moses Hess, em seu livro “Rome and Jerusalem”, publicado em 1862, classificou a questão judaica como uma das lutas nacionalistas inspiradas na Revolução Francesa. Perez Smolensk e Eliezer Ben-Yehuda também exortaram o renascimento do hebraico e o reassentamento da Palestina como base para o renascimento do povo judeu.
Herzl desconhecia essas obras sionistas, muito anteriores ao caso Dreyfus de 1895, mas viveu o antissemitismo na infância na escola, na juventude na universidade e na fase adulta como advogado e jornalista. Quando escreveu O Estado Judeu, tradução errônea do original em alemão Der Judenstadt, que literalmente seria “O Estado dos Judeus”, ele era um jornalista residente em Paris, que enviava por cartas seu material para o principal jornal de Viena, o Neue Freie Presse, e escrevia sobre uma grande variedade de assuntos. Ele via a vida judaica como um fenômeno em um mundo em mudança. Não era religioso, nem frequentava sinagogas, porém, era muito preocupado com o antissemitismo. Havia lido autores antissemitas e o jornal antijudaico francês La Libre Parole, de Édouard Drumont, portanto, conhecia muito bem até onde podia chegar o ódio emanado do antissemitismo.
Então, Herzl não foi o primeiro a falar do sionismo, mas foi ele, por seus esforços, quem elevou o problema das perseguições e racismo aos judeus ao nível de uma questão internacional. Foi naquela manhã fatídica, quando o capitão Alfred Dreyfus, injustamente acusado de traição, estava sendo degradado em público — e Herzl acreditava na inocência do militar francês — que ele ouviu o uivo da multidão do lado de fora dos portões da École Militaire,“morte aos judeus!” e percebeu que o antissemitismo estava profundamente enraizado no coração do povo, tão profundo entre franceses que seria impossível esperar seu desaparecimento dentro de um período mensurável. Foi precisamente aí que despertou sua sensibilidade para a honra judaica e ele tomou a decisão final de defender seu judaísmo. O espetáculo deprimente daquela fria manhã de inverno parisiense deve tê-lo abalado nas profundezas de seu ser. Foi o caso Dreyfus que o tornou definitivamente sionista.
Dito isto, então, passo a focar na questão que disseminaram mundo afora, a versão torta de que Herzl não teria preconizado que o Estado judeu devesse ser na Palestina e que poderia ter sido na Argentina, em Uganda, no Alaska ou até em Madagascar. Tais alegações não têm sustentação factível. Fazem parte do ideário destinado a reforçar o antissionismo e negação do direito do povo judeu à sua pátria bíblica. Isso tudo fica bem evidente, primeiro porque a tese dele denominada sionismo, é uma palavra que se refere a Sion (Tzion, em hebraico), um dos nomes de Jerusalém. Em seguida, na Parte 1, no Prólogo de “O Estado Judeu”, já na primeira linha, Herzl escreveu: “A ideia que desenvolvo neste manuscrito é muito antiga: o restabelecimento do Estado judeu”. Ora, restabelecimento não é estabelecimento. Restabelecimento significa ato ou efeito de recuperar, de restaurar. E isso só é compreensível tendo em mente a Palestina.
A questão de Uganda foi uma oferta do governo britânico ante a insistência dos sionistas pela Palestina por causa da premente situação de sofrimento, opressão e perseguições aos judeus cada vez maiores na Rússia. Ao contrário do que dizem, foi apenas uma intercorrência que não durou muito. A proposta de Uganda que Herzl levou ao Sexto Congresso Sionista, em 1903, não significou que ele a tenha aceitado. Teve que levar a proposta ao congresso porque o sionismo decidia tudo democraticamente. Porém, como está registrado em ata, foi rápida e solenemente recusada.
Sob o Primeiro Congresso Sionista, na Basileia, Suíça, em 1897, pode-se dizer que Herzl foi profético. No dia seguinte ao término do congresso, ele escreveu em seu diário: “Ontem fundei o Estado judeu e isso será uma realidade, talvez não em cinco anos, mas com certeza em cinquenta anos”. Em 1947, exatos 50 anos mais tarde, a ONU aprovava a Partilha da Palestina, abrindo as portas para a independência de Israel.
Nas páginas 24 e 25 da minha edição do livro O Estado Judeu, há um intertítulo, “Palestina ou Argentina? A qual das duas deve-se dar preferência?”. Herzl responde: “A [Jewish] Society aceitará o que lhe derem e aquela em direção à qual se incline a opinião geral do povo judeu. A Society averiguará as duas. A Argentina é, por natureza, um dos países mais ricos da Terra, de imensa superfície, população escassa e clima temperado. A República Argentina teria o maior interesse em ceder-nos uma porção de terra. A atual infiltração dos judeus provocou descontentamento: seria necessário explicar à Argentina a diferença radical entre àquela e a nova imigração judaica. A Palestina é a nossa pátria histórica inolvidável. O simples ouvir citar o seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo. Se Sua Majestade, o Sultão, nos desse a Palestina, nós nos comprometeríamos a sanear as finanças da Turquia. Para a Europa, formaríamos ali parte integrante do baluarte contra a Ásia: constituiríamos a vanguarda da cultura na sua luta contra a barbárie. Como Estado neutro, manteríamos relações com toda a Europa que, por sua vez, teria de garantir nossa existência. Quanto aos Lugares Santos da cristandade, poder-se-ia encontrar uma forma de extraterritorialidade, de acordo com o direito internacional. Montaríamos uma guarda de honra ao redor dos Lugares Santos, respondendo com nossa existência ao cumprimento deste dever. Tal guarda de honra seria o grande símbolo da solução do problema judaico, depois de dezoito séculos de sofrimento para nós”.
Creio que neste trecho nem é preciso pensar muito para concluir que a resposta de Herzl às suas próprias indagações apontam claramente a opção da Palestina. E observo que ele menciona o sultão turco, com quem se encontrou, porque então a Palestina era parte do império otomano.
Encontrou-se ainda com muitos líderes europeus e em 26 de janeiro de 1904 com o papa Pio X no Vaticano. E toda a conversa girou em torno do apoio do papa para a causa sionista de restabelecer um Estado judaico na Palestina. Pio X, segundo o diário de Herzl, recusou o apoio afirmando: “Nós não podemos aprovar este movimento. Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém – mas nunca poderemos favorecê-los... Os judeus não reconheceram Nosso Senhor, por isso não podemos reconhecer o povo judeu”. Herzl ainda tentou ser conciliador observando que situação da Palestina e de Jerusalém com seus lugares santos nas mãos dos otomanos, que não permitiam a visitação de cristãos ou de judeus. Ao que o papa respondeu: “Eu sei, não me agrada ver os turcos na posse dos lugares santos. Nós simplesmente temos que nos conformar com isso. Mas apoiar os judeus na conquista dos lugares santos isso não podemos”. Herzl procurou demover Pio X observando o sofrimento e as perseguições aos judeus, mas o papa foi inflexível negando apoio ao sionismo. Em resumo, o então papa Pio X preferia ver Jerusalém e os lugares santos cristãos nas mãos dos turcos do que nas dos judeus, que permitiriam o livre acesso dos cristãos. Um ressentimento beirando o antissemitismo.
No início da década de 60 do século passado, o então arcebispo Lefebvre, que fora excomungado por não aceitar as mudanças adotadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II da Igreja Católica,criou uma igreja dissidente na França e nos anos 70 fundou a Fraternidade São Pio X, da qual fizeram parte franceses que durante a ocupação alemã teriam ajudado a caçar judeus e, após a Segunda Guerra Mundial, teriam escondido notórios colaboradores nazistas em suas instituições, como o primeiro francês condenado por crimes contra a humanidade, Paul Touvier. Certos membros da fraternidade também divulgaram livros antissemitas e negaram a existência do Holocausto, como o bispo católico inglês Richard Williamson, que foi expulso da Argentina em 2009. Ele foi condenado por tribunais alemães e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos pelo negacionismo e por incitação ao ódio.
Outra evidência de que o sionismo de Herzl objetivava restabelecer a nação judaica na Palestina é o fato de o livro dele mencionar a criação da Sociedade Judaica [Jewish Society], mais tarde chamada Companhia Judaica [Jewish Company], e depois transformada em um banco para a aquisição das terras, o Banco Anglo-Palestino, em 1902, e hoje conhecido como Bank Leumi. Foram os antissionistas, principalmente os de esquerda, seguidos por líderes e intelectuais árabes contrários à recriação de Israel que difundiram a versão falaciosa de que Herzl não especificou desde o início do sionismo moderno que Israel teria que ser instalado na Palestina. No entanto, como se nota, a história não é bem como contam.
Szyja Ber Lorber é professor, jornalista e presidente da B’nai B’rith Paraná, ligada à B’nai B’rith Brasil e à B’nai B’rith Internacional, a mais antiga organização de Direitos Humanos.
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