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Em seu famoso prefácio para A fenomenologia do espírito, obra-magna da filosofia moderna, Georg Wilhelm Friedrich Hegel nos brinda com uma instigante relação entre o que vem a ser a verdade e sua construção a partir de suas relações com a negação. Para o filósofo alemão, “o espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto [...] o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser”. Ainda que não parece, essa ideia ajuda a entender como chegamos à cultura do cancelamento em voga hoje.
As lições de Hegel cruzaram diversas fronteiras. Adentraram profundamente o pensamento marxiano e marxista, onde o cancelamento se torna prática usual. Nesse universo, a ideia de transformar o sistema capitalista em uma verdade em negação constante proporcionou aos teóricos de esquerda construir uma dialética envolvente. Na França dos anos 1930, o intelectual russo Alexandre Kojève desenvolveu uma série de cursos hegelianos que atraíram diversos estudiosos da chamada “nova esquerda”, que ganharia destaque mundial no pós-Segunda Guerra Mundial. Nomes como Jean-Paul Sartre, Georges Bataille, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan e Raymond Aron fizeram parte desses encontros.
Aderir a bandeiras do politicamente correto passou a ser sinônimo de alta arrecadação em espaços midiáticos e, ao contrário, negá-las ou apontar suas contradições passou a ser sinônimo de cancelamento - ou mesmo linchamento virtual
A partir da crise do sistema de poder soviético, já presente nos eventos ocorridos na Hungria, em 1956, e na invasão da República Tcheca, em 1968, a leitura hegeliana da esquerda ocidental começou a se afastar daquele projeto revolucionário e passou a abraçar perspectivas periféricas, como o guevarismo cubano e, principalmente, o maoísmo chinês. Em maio de 1968, na cidade de Paris, era comum ver estudantes levantarem bandeiras em nome dos 3M (Marx, Marcuse e Mao). Iniciava-se um processo de distanciamento das guerras contra o imperialismo na perspectiva leninista, enquanto uma releitura hegeliana da Escola de Frankfurt passava a se concentrar na cultura e na estética do chamado “neoliberalismo”, com o objetivo de alcançar um novo espírito, uma nova verdade.
Na década de 1980, esse movimento teórico-filosófico começou a ganhar espaço na economia e na política. O maoísmo, desenvolvido a partir do pensamento hegeliano, promoveu a Revolução Cultural e, depois, com Deng Xiaoping, foi transformado em um projeto capitalista. Nas periferias, o guevarismo inspirou diversos movimentos de independência na África, guerrilhas na América Latina e apoio a organizações terroristas na Ásia.
No Ocidente, esses grandes movimentos ganharam espaço nas artes e no mundo acadêmico. O processo demorado de “converter o negativo em ser” abandonou a perspectiva da revolução armada e apropriou-se da hegemonia da palavra. O direito, o jornalismo e as ciências sociais, em geral, passaram a formar pessoas direcionadas à construção de narrativas e discursos do politicamente correto (que alimenta a indústria do cancelamento ao estabelecer o que pode ou não ser dito e mostrado), que deveriam compor o marketing das grandes marcas, a nova hierarquia dos papéis sociais, a defesa de minorias e a criação de um inimigo comum – o homem, hétero, caucasiano. Tudo isso armado com um forte poder de barganha financeira e econômica.
Aderir a tais bandeiras passou a ser sinônimo de alta arrecadação em espaços midiáticos e, ao contrário, negá-las ou apontar suas contradições passou a ser sinônimo de cancelamento - ou mesmo linchamento virtual. Proferir palavras de arrependimento por um passado longínquo tornou-se porta de entrada para o diálogo com o “lugar de fala”. Enquanto isso, guerrilheiros sequestram, terroristas aterrorizam e a China comunista exporta seu TikTok alienante para fora de suas muralhas. Subjaz a todas essas relações um projeto de enfraquecimento do Ocidente por meio de suas próprias verdades liberais, agora consumidas e corroídas em um processo dialético de longa duração.
Victor Missiato, analista político e doutor em História, é professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie (CPM), Tamboré.



