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Bolsonarismo: o fenômeno que a esquerda ainda não entendeu

Em 2018, desde que Bolsonaro foi eleito presidente, liberais e conservadores se uniram em torno do capitão (Foto: EFE/Sebastião Moreira)

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Em 2018, o Brasil assistiu a um fenômeno político. Jair Messias Bolsonaro venceu uma eleição sem tempo de TV, sem estrutura partidária e sem marqueteiros milionários e, ainda assim, varreu o sistema. A classe política, a academia e boa parte da imprensa tentam até hoje entender o que aconteceu. Chamaram-no de “populismo”, “onda conservadora”, “ressurgimento da extrema direita”. Mas o nome que pegou – bolsonarismo – segue sendo mais um rótulo do que uma explicação.

O que a esquerda, e parte da elite intelectual, ainda não compreenderam é o que um usuário das redes sociais resumiu com precisão: “o bolsonarismo é orgânico”. Ele não precisa de cartilha, partido nem direção central. É um movimento que brota das entranhas da sociedade – da sensação difusa de que o Brasil foi sequestrado por uma elite política e moral que já não representa o povo.

É isso que torna relevante o estudo publicado recentemente por João Feres Júnior, professor da UERJ. Em artigo para a Revista Opinião Pública, Feres propõe algo que poucos acadêmicos ousaram fazer: compreender o bolsonarismo não como delírio coletivo ou patologia política, mas como um fenômeno legítimo de opinião pública.

A pesquisa, que analisou o perfil dos eleitores de Bolsonaro nas eleições de 2022 com base em dados empíricos, revelou algo que contradiz o senso comum. Não existe um “tipo único” de bolsonarista. O que há é uma colcha de retalhos ideológicos costurada por sentimentos comuns, como o antipetismo, a desconfiança nas instituições e a defesa da ordem e da moral.

A esquerda tenta fundamentar o perfil do bolsonarismo, mas continua tropeçando em sua própria lente ideológica. Fala em fake news, discursos de ódio e atraso civilizatório, sem perceber que o que move esse eleitorado é menos o ódio e mais o ressentimento de quem foi deixado de fora da conversa

Segundo Feres, é possível identificar ao menos três grandes blocos dentro desse universo: o liberal antipetista pragmático, que vota em Bolsonaro mais por rejeição ao PT do que por afinidade ideológica – é o eleitor que quer menos Estado, mas que se indigna com a corrupção e os privilégios de Brasília; o militarista punitivista, que acredita na força, na disciplina e na autoridade – é o cidadão que defende penas mais duras e vê nas Forças Armadas um símbolo de ordem, mesmo podendo ser progressista em questões sociais; o evangélico ultraconservador, base moral do movimento, que enxerga em Bolsonaro a defesa da família, da fé e dos valores tradicionais ameaçados pelo avanço do progressismo cultural.

Segundo o autor, esses três grupos, distintos entre si, formam a alma do bolsonarismo – um mosaico de valores e crenças unificados por um sentimento de rejeição ao establishment. Não é apenas sobre política; é sobre identidade. É sobre quem representa “o povo de verdade” e quem faz parte da “casta” que vive de privilégios e narrativas.

A originalidade do estudo de Feres está em algo simples: separar o discurso de quem fala da interpretação de quem ouve. Bolsonaro pode dizer “Deus, pátria e família”, mas cada eleitor entende isso à sua maneira. Há quem o veja como um cruzado moral; há quem o veja como escudo contra o comunismo; e há quem o veja apenas como o homem que enfrentou o sistema e “falou o que ninguém mais tinha coragem de dizer”. Essa multiplicidade é o que dá ao bolsonarismo sua força e, ao mesmo tempo, sua resistência. Enquanto movimentos de esquerda dependem de partidos, sindicatos e intelectuais, o bolsonarismo se move nas redes, nas igrejas, nas rodas de amigos e nos grupos de WhatsApp. É o “Brasil de baixo” conversando consigo mesmo, sem mediadores, sem censura e sem vergonha de ser conservador.

Não por acaso, perfis bolsonaristas reagiram ao estudo com desconfiança. “A esquerda está investindo em estudos para nos destruir”, ironizou um usuário no X (antigo Twitter). O tom conspiratório pode soar exagerado, mas revela um sentimento real: o de que a academia tenta decifrar o bolsonarismo não para compreendê-lo, mas para neutralizá-lo.

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E, de fato, há algo de intrigante nisso. A esquerda tenta “fundamentar o perfil do bolsonarismo”, mas continua tropeçando em sua própria lente ideológica. Fala em “fake news”, “discursos de ódio” e “atraso civilizatório”, sem perceber que o que move esse eleitorado é menos o ódio e mais o ressentimento de quem foi deixado de fora da conversa nacional.

O estudo de Feres Júnior mostra que o bolsonarismo não é uma massa uniforme, mas uma constelação de percepções – um movimento mais emocional do que doutrinário, mais social do que partidário. É, em última instância, um grito coletivo de quem se recusa a continuar sendo governado por quem se diz dono da verdade. Enquanto a esquerda ainda busca enquadrar o fenômeno dentro de suas teorias – fascismo, populismo, autoritarismo –, o bolsonarismo segue se reinventando, pulsando fora das universidades, nas ruas e nas telas.

Pode-se gostar ou não, mas ignorar que o bolsonarismo se tornou uma expressão legítima de opinião pública é insistir em lutar contra um fantasma que já tomou corpo. Ele não precisa de palanque – basta um celular, uma crença e a sensação de que ainda há algo a defender: a liberdade de ser o que se é, sem pedir permissão à elite que perdeu o monopólio da narrativa.

O fenômeno bolsonarista tem base não apenas política, mas também moral e civilizatória. Ele se ancora na ideia de uma economia produtiva, voltada ao trabalho, à geração de riqueza e ao mérito, como sustentáculo de uma sociedade conservadora nos valores e solidária nas relações humanas.

Em sua essência, o bolsonarismo projeta um Brasil que se preocupa com a família, com os idosos, com os doentes e com o próximo – uma sociedade que respeita a dignidade de todas as pessoas, apoia as comunidades e valoriza a relação do indivíduo com Deus. Trata-se de uma proposta de segurança coletiva não como repressão, mas como proteção contra uma minoria agressora – a mesma que tenta impor comportamentos, silenciar divergências e transformar virtude em crime.

Nesse sentido, o bolsonarismo se define menos como um partido e mais como uma resposta cultural – o reflexo de um país que cansou de ser governado de cima para baixo e decidiu, enfim, falar por si.

Carlos Arouck, policial federal, é formado em Direito e Administração de Empresas.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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