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Fachada da UFPR, Universidade Federal do Paraná.| Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo

Bolsonaro não cansa de se trair. Ele não sabe, ou pelo menos finge não saber, que vocábulos como “ideologia” (que na falaciosa versão de uma de suas muitas bases obscurantistas – no caso em tela, o fundamentalismo religioso –, aparece na forma de “ideologia de gênero”), bem como “desconstrução” e seus derivados, foram colocados no mundo principalmente pelas disciplinas contra as quais agora ele e seus correligionários se voltam: a Filosofia e a Sociologia.

É verdade que não se trata de termos neutros ou ingênuos, o que não significa, como as evidências apontam, quenão possam eles próprios ser manipulados de modo divergente do arcabouço que lhe deu vida. Na qualidade de conceitos, funcionam como ferramentas: respondem e são acionados para resolver um problema, uma questão. Se o pensamento não se alheia, mas compõe o tecido da experiência, se ele caminha com as coisas e a estas se mistura. É capaz de mobilizar ou incitar um fazer, podendo ser convertido em instrumento num determinado campo de prática. É ele mesmo prático: adiciona e modifica a realidade. E neste ponto não difere muito das invenções da Química, por exemplo.

Acontece que Bolsonaro se trai na medida em que não reconhece que a Filosofia e a Sociologia a ele foram úteis em sua escalada ao poder. De modo equivocado ou não, fidedigno ou impostor, recursos teóricos que ganharam o mundo lhe foram oportunos, vieram a seu auxílio quando mais precisava. Versões de sociologias e filosofias leigas tornaram-se, para o bem e para o mal, objetos de disputa.

É fácil concluirmos que sociólogos e filósofos prestam um serviço deveras significativo

Por um lado, a Sociologia e a Filosofia, identificada pelo atual governo com as alas progressistas da sociedade (mesmo que sejam muito mais plurais do que nos querem convencer), venceram; seus conceitos já são parte, operadores do mundo. Se a relevância de uma ciência e um campo de saber se manifesta quando invenções e descobertas extrapolam o domínio do laboratório e da universidade e se tornam, por assim dizer, usuais; se é quando seus estudos resultam em disponibilizar artefatos para não especialistas, é fácil concluirmos que sociólogos e filósofos prestam um serviço deveras significativo. Caso contrário, o governo seria a estes indiferente.

Por outro lado, essas áreas de conhecimento fracassaram. Mas é o risco assumido quando, felizmente, não nos encerramos à torre de marfim. A título hipotético, imaginemos o bem intencionado inventor do avião que desejava aproximar pessoas ver “sua” aeronave virar dispositivo de guerra e destruição. Todos os cientistas corremos o risco do aparato técnico mais sofisticado prestar-se a uma engrenagem rudimentar, para não dizer abominável.

A cada vez, porém, que observamos nossa produção, sobre cujo uso perdemos o controle ao alcançar o senso comum, ser empregada de modo inapropriado, ou mesmo ser rebaixada, sentimo-nos convocados a reconsiderá-la. Essa obrigação sobre o que criamos pode atender ao nome de... Responsabilidade. Se toda apropriação é uma prática moral, que pode resultar criativa ou ignóbil, é importante que sigamos vigilantes, sobretudo com aqueles que consomem o produto dos nossos mais obstinados esforços para em seguida corrompê-los e nos hostilizar.

Leia também: As polêmicas do MEC continuam (editorial de 2 de maio de 2019)

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A Bolsonaro, cuja fórmula de patriotismo, a tirar por seu chanceler, é devotar-se aos Estados Unidos da América, sugiro finalmente um passeio pela história da Sociologia e sua disseminação pelo mundo, que data principalmente do pós Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, o interesse pela Sociologia por parte dos EUA, cujo governo e grandes empresas (como a Ford) encarregou-se de financiar, foi imprescindível no novo fôlego de institucionalização que esta ciência tomara, ali e alhures. Ora, sociólogos contam com sensibilidade cientificamente orientada e habilidade técnica para compreender os agrupamentos humanos e suas transformações. E os EUA ou qualquer país que anseie intervir de modo eficaz no futuro de uma dada realidade (em geral é do que se ocupam governos) já entenderam que precisam aliar-se e cultivar um diálogo com estes profissionais, cuja expertise, por sua vez, é formada no ambiente escolar.

Mas “tá ok”, um país à sorte dos humores anti-intelectualistas já compreendeu: inteligência é artigo em falta entre Bolsonaro e sua turma.

Maycon Lopes é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, bolsista CNPq.

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