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Lula em encontro com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, na Casa Rosada
Lula em encontro com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, na Casa Rosada| Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto

O poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, com a licença de ser “o engenheiro dos versos”, era prodigioso em neologismos. Exímio conhecedor da América do Sul, onde foi embaixador em diversas capitais, inventou a expressão “vizinhos invizinhos”, para retratar as relações históricas de rivalidades e de desconfianças entre Brasil e Argentina.

Com o advento da integração regional, no entanto, já nos governos iluministas de Alfonsin e Sarney, nos anos de 1980, tudo pareceu se reconformar, com avanços emulados não só em comércio. Foi o início da era Mercosul, tempos de percepção acerca da importância da aliança estratégica bilateral, com a superação da hipótese de conflito e de sua decorrente corrida armamentista.

A integração mercosulina de mais de 30 anos sobrevive. Sobrevive e se consolida, baseada no eixo Brasil e Argentina.

Superava-se também o mero palavrório dos discursos afetivos, da retórica de herdeiros ibéricos que somos, para a formulação de projetos concretos e inovadores. Mais que amizade, interesse sem pejos a partir da ideia força do livre comércio, mas bem mais além da Taprobana, incluindo mesmo cooperação nuclear e militar, e projetos comuns de submarinos e aviões. Como desdobramento das novas relações de confiança, a plena adesão à governança hemisférica sob a égide do direito internacional, com fina sintonia jurídica, desde o espaço atlântico e suas imensas riquezas marinhas, até à imensidão antártica com seus tremendos desafios geopolíticos.

Se por um lado a alternância de governos de distintas famílias políticas e ideológicas – tanto na Casa Rosada, como no Palácio do Planalto – produziu descompassos em série, por outro lado não houve rupturas ou sequer ameaça delas, com a convicção de ser a aliança Brasil-Argentina cláusula pétrea de política de Estado, contínua, não mero ajuste transitório e ocasional entre governos simpáticos. Se na política internacional tem sido constante o repertório de conflitos a revelar outros tantos vizinhos invizinhos, com a recente militarização até do Japão e da Alemanha, a beligerância não é a tônica do Cone Sul da América Latina.

Blocos econômicos representam, com efeito, a mais elevada criação da recente história das relações internacionais.

Nesse quadro, a simbologia de viagens inaugurais de chefes de Estado é algo que decorre naturalmente, como a realizada pelo presidente brasileiro a Buenos Aires. Da mesma forma, é certo que o próximo presidente argentino, a independer de seu matiz ou de seu cariz – e há eleições já em outubro de 2023 – também haverá de vir a Brasília em primeiro compromisso externo. Trata-se da inércia ditada pela conveniência da economia, pelo peso da história e pela fatalidade da geografia. De resto, há o prestígio às relações regionais e à integração, como manda nossa Constituição em seu artigo quarto, parágrafo único, a privilegiar a relação com a vizinhança.

Blocos econômicos representam, com efeito, a mais elevada criação da recente história das relações internacionais. Destinam-se a sociedades que amadurecem e descobrem a autoestima coletiva, portadoras de senso de desenvolvimento comum, assente na certeza de vantagens do comércio sem fronteiras, com sociedades plurais e democráticas, adeptas da convivência pacífica. É por razões de deficiência democrática que países como a Venezuela, por exemplo, não puderam até o presente momento fazer parte plena do Mercosul. E, pela mesma razão, deficiência democrática, que se deu a suspensão da República do Paraguai, em passado recente.

Não há como mitigar, no entanto, o fato de ter estado a integração do Cone Sul sempre condicionada por governos presidencialistas.

Devendo fundar-se em tratados que exijam e garantam segurança jurídica e respeito aos contratos (a cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia, no caso do Mercosul) sine qua non à fluidez da economia, blocos regionais não comportam exceções autoritárias ou rupturas institucionais.

Ainda no plano do enquadramento jurídico das economias de mercado, pela autorização expressa do direito do comércio internacional, só entre membros de blocos econômicos admitem-se privilégios tributários e preferências, a excepcionar o dogma da livre concorrência, facilidades normalmente destinadas a vizinhos, sem infringirem-se cláusulas da Organização Mundial do Comércio.

Ainda assim, não há como mitigar, no entanto, o fato de ter estado a integração do Cone Sul sempre condicionada por governos presidencialistas, com suas variâncias e inconstâncias. Presidencialismos mercuriais, é certo, com monopólio da condução da política externa por Poderes Executivos, onde a relação comerciais externas se inserem.

Malgrado tudo, superadas tantas intempéries, com solução pacífica de controvérsias, como na crise da suspensão do Paraguai, em 2012, julgada e pacificada em única instância pelo tribunal arbitral comum do bloco, o Tribunal Permanente de Revisão Arbitral, a integração mercosulina de mais de 30 anos sobrevive. Sobrevive e se consolida, baseada no eixo Brasil e Argentina, signatários majoritários e fiadores do Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991.

De resto, a contar com a garantia fulcral de continuidade, além do patrimônio imaterial de civilidade que a integração contempla, seus lucros materiais remanescem a crises e desinteligência pontuais ou a ideias mirabolantes, sempre com importantes investimentos bilaterais e crescentes trocas de setores produtivos qualificados. Sem espaço para retrocesso de invizinhos. Os números não são uma opinião.

Jorge Fontoura é advogado e professor.

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