• Carregando...
Lula ao lado do presidente da Bolívia, Luis Arce, e do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, durante a cúpula de líderes sul-americanos esta semana, em Brasília
Lula ao lado do presidente da Bolívia, Luis Arce, e do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, durante a cúpula de líderes sul-americanos esta semana, em Brasília| Foto: EFE/André Coelho

A recente afirmação do presidente Lula durante a cúpula dos presidentes da América do Sul de que houve a criação de uma narrativa sobre autoritarismo e ausência de democracia na Venezuela, demonstra algo que merece especial atenção da sociedade brasileira. Em um lugar em que as versões sobre a realidade (as chamadas narrativas) são sobrevalorizadas, qual o peso atribuído aos fatos, tais como se apresentam de modo cristalino à comunidade? Se, em detrimento da concretude dos eventos cotidianos, valoriza-se sobremaneira o exercício retórico sobre os fatos, quais os efeitos práticos sobre a democracia e o futuro da sociedade? É sobre tais questões que se deve refletir um pouco mais detidamente.

Inicialmente, note-se que a afirmação feita pelo máximo mandatário brasileiro, ao encontrar Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, foi criticada pelos chefes de estado do Uruguai, Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, representantes de campos diferentes do espectro político. A ausência de vigor das instituições democráticas em terras venezuelanas, portanto, parece ser tão flagrante a ponto de unir pessoas com visão de mundo bastante diversa. O que os vincula, aparentemente, é a opinião de que, independentemente da ideologia, existem alguns valores inegociáveis, como o respeito aos direitos humanos, à democracia e às instituições. Tais parâmetros, aliás, são juridicamente protegidos em qualquer Constituição ou documento que estruture blocos regionais e organizações internacionais.

Existem fatos e submetê-los pura e simplesmente ao império de eventuais versões distorcidas pode criar um panorama de elevado relativismo moral.

Diante disso, são preocupantes as manifestações que Lula adota em referência ao regime político da Venezuela (assim como já adotara, em algum momento, com relação a países como Cuba e Nicarágua, igualmente problemáticos em termos de respeito aos direitos ligados à dignidade humana). A sociedade espera que seja, no máximo, somente a demonstração de um afeto pessoal do presidente brasileiro pelo mandatário venezuelano, mas o histórico de declarações afáveis feitas por ele em relação a pessoas poderosas que tomaram atitudes discutíveis sob o prisma dos direitos humanos depõe contra o atual chefe do Poder Executivo do Brasil. De qualquer modo, mesmo que seja parte da política internacional manter contato com regimes não democráticos (inclusive com objetivos econômicos), nada autoriza fazer a defesa de configurações de poder desse tipo.

Como é sabido, a democracia é formada por dupla faceta: instrumental (aferição da vontade da maioria) e material (respeito aos direitos fundamentais). Ainda que eleições sejam formalmente realizadas, o descumprimento de normas que protegem a dignidade humana vulnera qualquer concepção democrática. Portanto, o desprezo à realidade por meio de malabarismos retóricos, criando as chamadas narrativas, consiste em atitude bastante nociva à construção de ambiente saudável para a vivência cotidiana do povo, passível de ser manipulado em tais situações, com base na desinformação, especialmente em época de redes sociais, algoritmos e grande rapidez de disseminação de notícias (sejam verdadeiras ou falsas). Existem fatos e submetê-los pura e simplesmente ao império de eventuais versões distorcidas pode criar um panorama de elevado relativismo moral, no qual é impossível vicejar qualquer tentativa de construção social minimamente decente. Como moldar uma sociedade baseada em valores que tenham como fulcro a dignidade humana se a realidade pode ser manipulável, ao sabor dos ventos ideológicos, com influência deletéria sobre as principais instituições nacionais? Deste modo, a honestidade de hoje poderá ser conspurcada por uma mera narrativa amanhã e a corrupção de ontem será laureada no futuro, bastando, para isso, que a versão majoritária (ou artificialmente criada) mude.

Em um território marcado pela prevalência de narrativas, portanto, não há como edificar um país conforme a determinação constitucional relativa aos fundamentos da cidadania e dignidade humana (incisos II e III do artigo 1º do Texto Maior) ou de acordo com o objetivo de que seja uma “sociedade livre, justa e solidária” (artigo 3º, inciso I), pois a comunidade pode ser facilmente manipulada por visões sectárias que distorcem os fatos de modo a servir aos respectivos anseios. A prevalência dos direitos humanos é princípio que rege o Brasil no campo das relações internacionais (artigo 4º, II) e prestigiá-lo em encontros de chefes de estado, acautelando-se em relação à sinalização que determinadas falas podem produzir sobre parceiros estrangeiros é importante passo na reconstrução da imagem nacional como ator internacional que tenha alguma respeitabilidade. As narrativas existem, mas os fatos são teimosos e insistem em contradizê-las (ao menos, na democracia).

Elton Duarte Batalha é advogado, doutor em Direito e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]