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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Sou um inocente. Mesmo quando não quero, as polêmicas caminham até mim. Que posso eu fazer?

Semana passada, numa festa de aniversário, discuti seriamente se bonecas sexuais deveriam ser permitidas. Explico melhor. Parece que em Paris existem bordéis de bonecas siliconadas (made in China). Por 100 euros, é possível escolher uma loira/ruiva/morena e experimentar uma hora de intimidade.

Quando escutei a história, ri alto. E imaginei a boneca, voando janela afora como um balão furado, depois das investidas de um cliente mais afoito.

Uma colega acadêmica não riu. Para ela, essa cultura doentia alimentava uma “cultura de violação”. Raciocínio dela: um homem que paga por um objeto sexual acaba por tratar as mulheres da mesma forma. Como objetos sexuais.

Discordei. Duplamente. Primeiro, porque um homem que recorre a bonecas siliconadas dificilmente tem contato com mulheres reais. Mas esse não é o ponto principal. O ponto principal é que é perfeitamente possível ter várias fantasias eróticas, violentas, até criminosas – e, hélas!, não cumprir nenhuma no mundo real.

Compreender significa testemunhar a dificuldade contemporânea de distinguir a fantasia da realidade

De nada serviram meus apelos à racionalidade. Deixei de argumentar. Preferi compreender.

E compreender significa testemunhar a dificuldade contemporânea de distinguir a fantasia da realidade. Faz lembrar uma antiga namorada minha que tinha uma obsessão pela “fidelidade mental”. Para ela, fantasiar o adultério era tão grave como cometê-lo – um dogmatismo que, curiosamente, convidava ao ato. Como diz o ditado, perdido por cem, perdido por mil.

Eis o retrato dos tempos infantis em que vivemos – e escrevo “infantil” no sentido preciso do termo: as crianças, que temem o escuro, acreditam mesmo que existe um monstro escondido no quarto. Isso passa com a idade. Nos debates contemporâneos, e sobretudo no feminismo mais extremista, há uma regressão da idade: o que se imagina é o que acontece. Se eu, homem, tenho delírios escaldantes com a minha vizinha (ou com a boneca siliconada da minha vizinha), sou um predador sexual.

E não falo apenas das bonecas siliconadas. Falo de qualquer conversa sobre os méritos morais de um romance, um filme, um quadro. Exemplo: quando morreu Philip Roth, ninguém perdeu tempo a discutir a obra de um escritor gigantesco. Mais importante foi determinar se Roth era um caso de “masculinidade tóxica” através dos seus personagens. Se eles são machistas, lascivos, priápicos, isso desqualifica Roth como escritor. Uma vez mais, não há distinção entre o personagem e o criador; entre a ficção e a realidade. Uma criança de 4 ou 5 anos não diria melhor. Mas é bizarro ver esse comportamento em adultos alfabetizados.

Leia também: O leão Cecil e o respeito aos animais (artigo de Adel El Tasse, publicado em 11 de agosto 2015)

Leia também: O respeito às crianças, também nos museus (artigo de Guilherme Schelb, publicado em 18 de setembro de 2017)

Pior: esses adultos infantis não se limitam a confundir a fantasia com a realidade. Eles procuram extirpar da realidade qualquer fantasia incontrolável. Podem ser filmes “machistas”, romances “racistas”, quadros “homofóbicos”. Podem ser clientes de bonecas siliconadas. O ideal, aliás, seria encontrar uma terapia eficaz para eliminar da cabeça humana todos os desvios e preconceitos que os paladinos do bem consideram intoleráveis. Enquanto essa hora não chega, existem as fogueiras laicas.

Cansado de discutir, murmurei o óbvio: são apenas bonecas; e são apenas malucos brincando com bonecas.

Mas depois, de regresso a casa, espreitei o assunto na internet. Confirmo: existem mesmo bordéis de bonecas em Paris. Confirmo: Paris não é caso único. Confirmo: existem movimentos feministas que marcham contra esses bordéis.

E confirmo: uma das áreas da reflexão ética em franca expansão lida com os alegados “direitos” dos robôs. Se os animais têm direitos, por que não as máquinas? A pergunta, para mim, não faz sentido: os animais não têm direitos; somos nós, humanos, dotados de autonomia, racionalidade, imaginação e reflexão que podemos articular e defender direitos. De igual forma, só nós, humanos, temos deveres. Entre eles, está o dever de não tratar os animais com crueldade desumana.

Só nós, humanos, temos deveres. Entre eles, está o dever de não tratar os animais com crueldade desumana

Se assim é para os animais (que, apesar de tudo, são dotados de senciência), os robôs, mesmo os mais sofisticados, habitam outro planeta. A ambição de falar em direitos para robôs só revela o quão grotesca se tornou a nossa incompreensão do que é ser humano.

E “grotesca” é a palavra: imaginar que brinquedos sexuais são “violados” por homens é uma paródia com um crime sério. É, no fundo, uma paródia com as mulheres reais que são vítimas reais de estupros reais.

Comigo, não. Até porque, na história das bonecas, eu só sinto verdadeira compaixão por uma das partes. A dos clientes, claro.

João Pereira Coutinho é doutor em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa.
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