Em 2019, tive a oportunidade de participar do curso fundamentos da vida intelectual, promovido pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). O primeiro módulo foi desenvolvido pelo teólogo, pedagogo e mestre em letras, Igor Miguel que, para cada uma das nove aulas, escreveu papers a fim de melhor orientar seus alunos. Em 2021, os papers foram compilados e transformados na obra A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã.
Apoiado na tradição neocalvinista e nos pais da igreja, Igor inicia sua obra explorando a pulsão religiosa inata do ser humano, em outras palavras, a inquietação do coração humano por respostas e suas tentativas, por vezes falhas, em saná-las. Igor também introduz a resposta do cristianismo a essas inquietações existenciais e seus profundos desdobramentos na forma como o cristão se engaja na tarefa do pensamento. Mas, afinal, onde se encontra essa intelectualidade distintamente cristã, afirmada por Igor e outros autores, em face do terrível diagnostico de Mark A. Noll em sua famosa obra O escandalo da mente evangélica: "o escândalo da mente evangélica é que não há muita mente evangélica”? É isso que pretendo explorar brevemente neste artigo.
Diferentemente do projeto racionalista, a intelectualidade cristã é assumidamente comprometida com a revelação do Deus trino em Cristo.
O projeto racionalista visou um empreendimento intelectual desprovido de qualquer compromisso religioso, neutro de pressupostos, que pudesse macular o processo de aquisição do conhecimento. Ora, se tal neutralidade fosse possível, não deveríamos esperar que em todo empreendimento intelectual alcança-se, no mínimo, resultados similares? Não foi o que aconteceu. Ironicamente, até mesmo o racionalismo abarcou diferentes linhas de pensamento e abordagem, uma vez que têm seus próprios compromissos, a começar pela concepção de racionalidade autônoma, sem a qual o projeto não poderia progredir.
O filósofo holandês Herman Dooyeweerd destacou que nas raízes das quais o pensamento emerge há inevitavelmente pressuposições e compromissos religiosos. A consciência de que não há intelectualidade autóctone abre um novo horizonte para compreendermos a relação entre cristianismo e a tarefa do pensamento. "O impulso religioso inato do ego, no qual a relação em direção à origem divina encontra expressão, toma seu conteúdo de um motivo-base religioso como o poder central de nosso pensamento e ação”, ressalta Dooyeweerd.
Alasdair Maclntyre também trouxe uma importante contribuição ao debate. Segundo o filósofo britânico, “racionalidade é ela mesma, se teórica ou prática, um conceito com uma história: de fato, uma vez que existe uma diversidade de tradições de investigação, com histórias, existem, enfim, racionalidades ao invés de uma racionalidade". Portanto, não só é possível a relação entre cristianismo e a tarefa do pensamento, como já existe uma intelectualidade cristã, fundada no cânon bíblico e em sua tradição, introduzida por Igor Miguel nos capítulos posteriores, que pode reivindicar seu lugar no palco do debate público e expressar sua distinção.
Diferentemente do projeto racionalista, a intelectualidade cristã é assumidamente comprometida com a revelação do Deus trino em Cristo. Tal comprometimento sana a ruptura e aparente inconformidade do dualismo entre teoria e prática, pois o próprio Cristo, a Sabedoria presente na criação e proclamada no desenrolar da história bíblica, revelou-se em forma de homem e habitou entre nós, revelando o caráter integral de Deus e tornando-o principal ingrediente da epistemologia cristã, que não busca isoladamente o conhecimento técnico, mas almeja encarnar (conformar-se) a própria sabedoria em sua empreitada.
A Igreja como comunidade epistêmica e sapiencial também cumpre um papel importante no empreendimento intelectual, uma vez que ela preserva a tradição cristã – o depósito da fé – e auxilia por meio de seus ritmos litúrgicos (culto, instrução, comunhão e missão) os cristãos na formação em “conformidade com a Sabedoria divina, que é o próprio Cristo”. Tal formação, que também se difere do projeto racionalista, não se dá de forma individual e intelectualizada, pelo contrário; nela o cristão reconhece sua incapacidade de compreender sozinho as verdades e, portanto, sua dependência do desvelamento de Deus registrado na criação e nas Escrituras.
O intelectual cristão também reconhece seu chamado para estar em comunhão com os irmãos, uma vez que é no ensino da Igreja que a tradição bíblica da sabedoria é transmitida, como bem notou o teólogo Dru Johnson: "A tradição bíblica é uma tradição intelectual (...) Os textos e as comunidades que praticaram suas diretrizes transmitiram uma tradição intelectualmente rigorosa, singularmente capaz de transformar um povo inteiro em uma comunidade astuta e perspicaz. E assim, foi transmitida enquanto textos, rituais e comunidade – a filosofia como um forma de ser um povo”.
Essas são algumas das muitas contribuições para a compreensão do que significa uma intelectualidade cristã e suas implicações desenvolvidas por Igor Miguel em A escola do Messias, uma obra introdutória que preenche uma lacuna na literatura teológica brasileira, relevante não apenas para aqueles vocacionados ao trabalho intelectual, como para a própria Igreja entender seu papel na formação comunitária do coração de cada cristão que almeja viver integralmente para a glória de Deus.
Pedro Miquelasso é aluno do Invisible College e membro do grupo de estudos ABC² em Curitiba.
Deixe sua opinião