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Celeridade Seletiva: o julgamento do 8/1 e o risco ao devido processo legal

Ao acelerar a tramitação do 8 de janeiro, o STF envia uma mensagem dúbia à sociedade: os réus já estão condenados antes mesmo do julgamento. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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O Supremo Tribunal Federal (STF) tem caminhado a passos largos no julgamento dos réus do chamado "núcleo 1" do caso 8 de Janeiro — grupo que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus principais auxiliares civis e militares.

Em tempo recorde, o STF recebeu a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), colheu dezenas de depoimentos e deu início à instrução processual com uma velocidade que, à luz dos padrões históricos da própria Corte, é simplesmente inédita. E essa pressa, que vem sendo apresentada como sinal de eficiência, pode também ser um grave sintoma de desequilíbrio institucional.

Tomemos os fatos: a denúncia foi apresentada pela PGR em 18 de fevereiro de 2025. No dia seguinte, o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, intimou os réus a apresentarem defesa prévia em 15 dias.

Já em 25 e 26 de março — pouco mais de um mês depois — a Primeira Turma do STF se reuniu para decidir sobre o recebimento da acusação. Em tempo quase simultâneo, mais de 50 testemunhas foram ouvidas. Tudo isso em menos de quatro meses.

Esse cronograma impressiona quando comparado à média histórica. Segundo levantamento da ESPM, por meio da plataforma Conta Aberta/STF, uma ação penal comum no STF leva cerca de 722 dias do recebimento da denúncia até a sentença final — mais de dois anos. 

Mesmo nas ações penais sob relatoria do próprio Moraes, o tempo médio é de 605 dias. O caso do mensalão, um marco do julgamento de crimes políticos no Brasil, tramitou por mais de sete anos. Aqui, o Supremo pretende julgar, instruir e sentenciar em menos de um semestre.

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A ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal não são formalidades dispensáveis: são fundamentos da justiça, sobretudo quando o réu é um ex-presidente da República e os fatos têm potencial de remodelar a história política do país.

A crítica não parte apenas de analistas jurídicos independentes, mas dos próprios advogados de defesa. Relatam acesso precário aos autos, prazos exíguos e restrições logísticas incompatíveis com o volume de material probatório. 

A defesa de Jair Bolsonaro, por exemplo, aponta um número colossal de documentos e sustenta que o prazo de 15 dias para resposta à acusação foi claramente insuficiente. O mesmo se aplica à defesa de outros réus, como o general Braga Netto, que classificou a tarefa como “hercúlea”.

Também se questiona a assimetria de tratamento entre acusação e defesa. Enquanto o Ministério Público pode contar com a estrutura coercitiva do Estado para localizar e intimar testemunhas, os advogados dos réus foram incumbidos de fazer isso por conta própria — mesmo quando se tratam de autoridades públicas. Tal disparidade contraria o princípio da paridade de armas e compromete a integridade do processo.

Há ainda o uso excessivo do rito virtual para audiências e instruções, que reduz a possibilidade de reação imediata das defesas, empobrece o contraditório e afasta o cidadão do exercício público da Justiça. Não à toa, a OAB emitiu nota destacando que o julgamento presencial é componente essencial à ampla defesa.

É evidente que os atos de 8 de janeiro foram graves. Mas é justamente em tempos excepcionais que a Constituição precisa ser aplicada com maior rigor. A lei não pode ser dobrada ao sabor do contexto político, sob o risco de transformarmos a justiça penal em instrumento de conveniência institucional.

Ao acelerar a tramitação deste processo a um ritmo quase sumário, o STF envia uma mensagem dúbia à sociedade: a de que os réus já estão condenados antes mesmo do julgamento. E isso fere a presunção de inocência, deslegitima o papel da defesa e mina a credibilidade do Judiciário.

O país precisa de justiça — não de justiçamento. E justiça se faz com serenidade, equilíbrio e respeito irrestrito às garantias de todos os cidadãos, sem exceção. Nem mesmo — ou sobretudo — quando o acusado se chama Jair Bolsonaro.

Vinicius Marins é Doutor e Mestre em Direito, e professor de Direito Público.

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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