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| Foto: Stephen Shaver/ Bloomberg

O que é preciso para institucionalizar meio milhão de membros de um grupo étnico em apenas um ano? Recursos infinitos e uma organização elaborada, mas o governo chinês não é mesquinho. Um volume imenso da população uigur em Xinjiang, região oeste do país – bem como cazaques, quirguizes e outras minorias – está sendo detido para se submeter ao que o Estado chama de “transformação por meio da educação”. Milhares deles foram trancafiados em campos cercados de arame farpado, com superfícies antibomba, portas reforçadas e salas vigiadas.

As autoridades chinesas são cautelosas e evasivas, quando não arrogantes, em relação aos relatos referentes a esses campos, só que agora terão que explicar seu próprio rastro eloquente de evidências, ou melhor, um sistema de licitação pública que criaram, convidando as empresas a submeterem orçamentos para ajudar a construir e administrar as instituições.

As autoridades chinesas são cautelosas e evasivas, quando não arrogantes, em relação aos relatos referentes a esses campos

Os uigures têm mais em comum, cultural e linguisticamente, com os turcos que com os chineses han, e a maioria é muçulmana. Incomodados com a mão pesada do governo chinês na região, alguns resistiram, geralmente através de meios pacíficos, apenas ocasionalmente de forma violenta, atacando funcionários públicos e, excepcionalmente, civis. No que diz respeito à China, ela insufla a islamofobia ao rotular tradições muçulmanas comuns como manifestação de “extremismo” religioso.

Ao longo da última década, as autoridades de Xinjiang aceleraram políticas para remodelar os hábitos uigures – e até, como dizem, seus pensamentos. Assim, os governos locais organizam cerimônias públicas e abaixo-assinados pedindo às minorias éticas que jurem lealdade ao Partido Comunista Chinês; oferecem cursos obrigatórios de reeducação e espetáculos forçados de dança, já que algumas vertentes islâmicas proíbem a dança. Em alguns bairros, os órgãos de segurança fazem avaliações constantes do risco representado pelos moradores: só pela etnia, os uigures perdem dez por cento na contagem, e outros dez se rezarem diariamente.

Os uigures já tinham se acostumado a viver sob um Estado intrusivo, mas as medidas se tornaram realmente draconianas depois da chegada, em fins de 2016, de um novo chefe regional do partido, vindo do Tibete Desde então, alguns policiais confessam ter dificuldades em completar as novas cotas de detenção – que, no caso de um determinado vilarejo, chega a 40 por cento da população.

Um novo estudo feito por Adrian Zenz, pesquisador da Escola Europeia de Cultura e Teologia, em Korntal, na Alemanha, analisou os anúncios públicos que convidavam as empresas a apresentarem orçamentos para vários contratos relativos às instalações de reeducação em mais de 40 localidades em Xinjiang, dando uma ideia dos vastos recursos burocráticos, humanos e financeiros que o Estado dedica a essa rede de detenção. O documento revela que o governo incentiva a construção de campos em toda a região desde 2016, a um custo até agora de mais de 680 milhões de renminbi (mais de US$107 milhões).

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A convocação para a licitação parece ter sido divulgada em 27 de abril, sinal de que mais campos estão sendo construídos. Esses chamados se referem a ofertas para erguerem complexos de quase 82 mil m², alguns com espaço para a Polícia Armada do Povo, uma força de segurança paramilitar. As administrações locais também estão colocando anúncios para recrutar pessoal de campo com experiência em psicologia criminal ou antecedentes nas Forças armadas ou na polícia.

As evidências desses detalhes técnicos são inestimáveis, especialmente levando-se em consideração das dificuldades cada vez maiores que pesquisadores e repórteres enfrentam tentando trabalhar em Xinjiang. Diversos jornalistas estrangeiros escreveram artigos importantes, apesar do assédio policial e das detenções temporárias; já os profissionais uigures e/ou suas famílias enfrentam coisa muito pior.

Considerando-se os riscos, os relatos em primeira mão dos ex-detidos continuam raros, embora alguns estejam começando a surgir.

Em fevereiro, um homem uigur que estuda nos EUA deu à Foreign Policy uma das descrições mais detalhadas das condições de detenção publicadas até hoje: ele foi detido ao voltar para a China para uma visita, no ano passado, e ficou preso 17 dias sob acusação desconhecida. Descreveu os dias como longos, tendo que marchar em uma cela lotada, gritando palavras de ordem e assistindo a vídeos de doutrinação sobre atividades religiosas supostamente ilegais. E quando estava sendo solto, um guarda o alertou: “O que quer que diga ou faça na América do Norte, lembre-se de que sua família continua aqui. E nós também.”

Os campos também são instrumento de punição e, obviamente, ameaça. Poucos detentos são acusados formalmente, quanto mais sentenciados

No mês passado, um cazaque descreveu na Radio Free Europe/Radio Liberty o período de quatro meses que passou em um acampamento no norte de Xinjiang, dizendo que conheceu gente ali que estava cumprindo pena de até sete anos. E conta que foi forçado a estudar uma forma de “manter os segredos nacionais chineses seguros” e “não ser muçulmano”. Nesses casos, como em tantos outros, os detentos não tiveram chance de avisar ninguém, suas famílias apenas supondo o que possa lhes ter acontecido.

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E agora esses raros relatos estão sendo confirmados, ainda que involuntariamente, pelo próprio governo chinês, ao fazer convocações públicas para a contratação de empresas com o objetivo de erguer novos campos de detenção. Muitos detalhes desses sistema carcerários não são divulgados e continuam desconhecidos; de fato, não se sabe bem nem o verdadeiro objetivo desses campos.

Sabe-se que servem como espaço para a doutrinação compulsória. Algumas autoridades os utilizam também para prevenção, encarcerando aqueles que suspeitam serem contra o regime chinês. Em duas localidades, por exemplo, escolheram pessoas com menos de 40 anos como alvo, alegando que essa faixa etária é uma “geração violenta”.

Os campos também são instrumento de punição e, obviamente, ameaça. Poucos detentos são acusados formalmente, quanto mais sentenciados. Alguns ficam sabendo quanto tempo terão que permanecer ali; outros ficam indefinidamente. Essa incerteza, e a lógica arbitrária da detenção, instila medo na população inteira.

Percebi, em minha última viagem para Xinjiang, em dezembro passado, que a vigilância era indiscutivelmente maior – tanto que evitei conversar com uigures na ocasião, com medo que o mero contato com um estrangeiro bastaria para mandá-los para a prisão, para serem reeducados. Enquanto isso, meus contatos uigures fora da China apontavam para os expurgos baseados em cotas da Campanha Antidireitista comunista, de 1957-59, e as regras em constante mutação durante a Revolução Cultural para explicar que, mesmo se os uigures de Xinjiang hoje quisessem se submeter integralmente ao regime de segurança, nem saberiam mais como fazê-lo. Participar dos serviços de segurança era uma das raras formas de garantir a própria proteção pessoal, mas já não é mais assim.

Milhares de famílias foram destroçadas; uma cultura inteira está sendo criminalizada. Alguns políticos locais usam uma linguagem assustadora para descrever o propósito da detenção, tais como “erradicação de tumores” ou borrifam produtos químicos nas lavouras para matar “as ervas daninhas”.

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Classificar com uma única palavra os maus-tratos deliberados e em larga escala de um grupo étnico é capcioso: termos antigos geralmente escondem as especificidades de novas injustiças. Ao mesmo tempo, traçar comparações entre o sofrimento de dois grupos diferentes é inerentemente tenso e potencialmente reducionista. Entretanto, eu me arrisco a fazer uma declaração que descreve a luta dos uigures, cazaques e quirguizes na China hoje: Xinjiang se tornou um “Estado policial” comparável à Coreia do Norte, com um racismo formalizado que se rivaliza ao apartheid sul-africano.

E só há motivos para temer que a situação piore ainda mais. Recentemente surgiram vários relatos de uigures que morreram em detenção – em uma repetição preocupante do uso estabelecido da tortura nos campos de reeducação chineses para os seguidores do movimento espiritual Falun Gong. E a julgar pela sanha construtora de novos campos em Xinjiang, parece que as autoridades chinesas acham que não chegaram nem perto de conquistar qualquer que seja a sua meta.

Rian Thum é professor associado de História da Universidade Loyola de Nova Orleans e autor de “The Sacred Routes of Uyghur History”.
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