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Vacina contra coronavírus e remédios contra Covid
| Foto: Bigstock

Ciência é a palavra da moda. "Sou a favor da ciência" alardeiam em um volume cada vez maior de pessoas. Mas o que é ciência? E se ela é inconteste, por que há a pueril necessidade de afirmação? Gritar mais alto? Mais uma vez, faz-se necessário o resgate da antiga sabedoria grega. Três mil anos depois, Aristóteles, por exemplo, ainda é, irritantemente, esquecido e ignorado por tais cientistas e pensadores contemporâneos.

Grosso modo, ciência nada mais é que método analítico com o objetivo último de produzir uma explicação. O método não só do objeto de estudo, mas também das condições nas quais está inserido. Condições normais de temperatura e pressão (CNTP) nas exatas, por exemplo. Uma onça parda, em outro exemplo, comporta-se de uma forma quando faminta e em seu habitat natural, saciada e em cativeiro, observa-se outro comportamento. Para não ter que desenhar, sabe-se que a mistura, em proporções iguais, entre tinta guache preta e branca resultará na cor cinza. Repete-se o método, sob as mesmas condições, e obtêm-se um padrão, o resultado do estudo, aí sim, científico. Aristóteles, sinteticamente, fundamentou categorias padronizadas para a sua filosofia -etimologia é o resultado das palavras gregas philos sophia, amor e conhecimento respectivamente. Capicce?

Logo, o pensamento filosófico é indissociável do processo científico. Parafraseando Raul, a filosofia é o começo, o meio e o fim. Da aplicação metodológica à ética. Pitágoras, ele mesmo, além de ser um grande matemático, foi um brilhante pensador. Compreendeu ele a indissociabilidade com a reflexão filosófica nas concepções matemáticas que desenvolveu.

Nas últimas décadas do século XIX, o homem ocidental experimentou um desenvolvimento técnico-científico acelerado como nunca antes ocorreu. Nicolau Sevcenko, brilhante historiador com quem o este autor teve o privilégio de acompanhar suas aulas na Universidade de São Paulo, descreveu em sua seu primoroso livro “A Corrida para o Século XXI” uma precisa metáfora sobre o transcorrer do final do século XX e início do XXI como uma montanha russa, onde o europeu, nos momentos de maior euforia sobre tais avanços, época conhecida como Bélle Epóque, como aquele momento único em que, antes da gigantesca queda há a expectativa da subida e, por alguns segundos o carro que o carrega para por completo, quando então contempla a paisagem abaixo, como se fosse Deus, eufórico, acima de todos. Foi o momento que o saudoso Sevcenko entendeu como o período pré-guerra.

Por conseguinte, houve também a ascensão do positivismo de Comte. Uma nova religião surgiu: o cientificismo. A fé na capacidade humana de resolver as grandes questões da humanidade o economista britânico Thomas Malthus, Nostradamus iluminista do outro lado do Canal da Mancha, com base em dados e estatísticas históricos, chegou ao diagnóstico apocalíptico, vulgo malthusianismo, de que a população global multiplicar-se-ia segundo uma progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos, em progressão aritmética. Fome, caos, terror e pânico. O mundo, evidentemente, não entrou em colapso famélico. Malthus, ao restringir sua pesquisa em projeções estritamente lineares, ignorou uma variável indispensável: a inventividade humana. Hoje, produz-se muito em áreas agrícolas diminutas, algo que os adeptos do malthusianismo ignoram. Israel produz tomates no deserto. Resumidamente, o malthusianismo não passou de um delírio pseudocientífico.

Todavia, houve quem defendeu, no contexto pós-guerra e início da Guerra Fria, sua renovação. O neomalthusianismo atribui o erro de seu fundador apenas ao período analisado. A calamidade bélica, a ruína da indústria europeia, o crescimento da taxa de natalidade e a queda na produção de commodities eram os sintomas, argumentavam. Novamente, esmurraram a ponta da faca: Plano Marshall, babyboomers, contraceptivos, desenvolvimento técnico e agrícola trataram de sepultar, sem lamentos, o catastrofismo travestido de ciência.

Michel Henry, pensador, filósofo e acadêmico, em sua excelente produção analítica “A Barbárie”, esmiúça com maestria algumas das principais mazelas da sociedade contemporânea. Segundo ele, “é preciso considerar o hiperdesenvolvimento da ciência moderna como uma das principais tentativas pelas quais a humanidade empreendeu fugir à sua angústia˜. Quando “voltamos nosso olhar para aquele que se dedica a essa tarefa (...), o cientista (...), ele não deixa de existir enquanto homem, dentro do mundo da vida, do qual faz a abstração nas suas teorias: é nesse espaço que ele habita e realiza suas tarefas, que faz suas refeições e tira férias, que tem uma família e relações. É enquanto ser vivo que sente suas alegrias e dores, suas preocupações e ambições, por mais científicas que sejam˜.

Não me atrevo aqui, amigo leitor, a enveredar-me na discussão biomédica da pandemia que nos assola. Pretendo aqui propor um exercício analítico, filosófico, de falsas e oportunistas premissas apregoadas por especialistas de redações televisivas, youtubers e políticos oportunistas. Sócrates (o gênio filosófico, não o futebolístico) adotou como o mais básico método na busca da verdade objetiva: o questionamento de conceitos, fenômenos e ideias. A verdade socrática só seria alcançada pela plena compreensão, grosso modo, do objeto de estudo, a qual só pode ser atingida pela dúvida, pelo questionamento profundo. Por que a água atinge o estado gasoso quando aquecida? Ou solidifica-se quando resfriada? A dúvida é causa motriz do progresso, do estudo, da criatividade, da explicação. É o início.

Causa-me espanto quando, sem qualquer discussão pública, o youtuber do Covid-19 afirma barbaridades como a inevitabilidade de distanciamento social por, no mínimo, dois anos. Contestá-lo é negar a ciência, dados e estatísticas, e quem o faz, inevitavelmente, é imediatamente rotulado de obscurantista, teórico da conspiração. Governadores e prefeitos adotam cegamente medidas públicas com base em tal tese e loucos são aqueles que indagam e questionam? New York e New Jersey atingiram índices de 60% de isolamento, o que não impediu o incessante contágio. Qual a explicação? Milhões de brasileiros são, subitamente, confinados, demitidos e desumanizados, mas o problema é buscar respostas, pensar e questionar. Não se trata de negar a pandemia, como apregoam os defensores da ciência das redes sociais. Pelo contrário, o debate pressupõe, obviamente, sua inequívoca existência. É também evitar que a histeria sobreponha a razão, o que não implica -outra vez, só falta desenhar- em relevar as dores das famílias que tiveram vidas ceifadas pelo vírus.

Todavia, é de um bovinismo imensurável ignorar as lições que nossos antepassados nos legaram. O fator humano, a prática científica, o incômodo da dúvida, são responsáveis, por exemplo, por inovações revolucionárias, mas que tratamos como banais, como a penicilina, a geladeira ou a eletricidade. Apontar as razões pelas quais o país é incapaz de lidar com uma pandemia, mas trata como normal as milhares de vítimas anuais da dengue, de enchentes e de deslizamentos de terra faz deste autor um terraplanista. Apontar as falhas factuais da análise do guru biólogo da moda, ou então o uso político e autoritário da crise para fins eleitorais, é algo insensível, oportunista ou militante. Pensar é para quem não trabalha. Que ironia!

Marcos Paulo Candeloro é cientista político e professor de Ciências Humanas.

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