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O governador de São Paulo, João Dória, com a enfermeira Mônica Calazans, a primeira a ser vacinada contra a Covid-19 no Brasil.
O governador de São Paulo, João Dória, com a enfermeira Mônica Calazans, a primeira a ser vacinada contra a Covid-19 no Brasil.| Foto: AFP

Dar sentido ao emaranhado de informações sobre a crise sanitária global não é fácil. São muitos os dados disponibilizados diariamente e múltiplas as possibilidades de interpretação. Entender a dimensão da crise e traçar estratégias eficientes com recursos escassos é hoje o maior desafio. À sociedade, cabe acompanhar o desempenho das autoridades e cobrar transparência e efetividade das ações de combate à pandemia.

No Brasil, dados oficiais consultados no dia 11 de fevereiro indicam quase 9,7 milhões de casos, mais de 230 mil mortes, letalidade (razão entre os números de mortes e de casos) de 2,4% e uma taxa de mortalidade de 111,8 mortes por 100 mil habitantes. Considerados o tamanho, a heterogeneidade e as desigualdades do Brasil, esmiuçar essas informações é essencial para entender a evolução da pandemia por aqui.

São Paulo concentra 22% da população brasileira, responde por cerca de um terço do PIB e produz quase metade dos artigos científicos do país. Com relação à moléstia em curso, são dignos de nota o pioneirismo e protagonismo do Instituto Butantan na produção da Coronavac, com mérito indiscutível, e a exposição, nem tão meritória assim, do midiático governador. Foram mais de 170 coletivas de imprensa desde março de 2020, presença frequente nas mídias sociais etc.

Há vários indícios do uso político e superficial da palavra “ciência” e da contradição entre discurso e prática em São Paulo

São Paulo tem mais de 1,87 milhão de casos, taxas de letalidade de 2,95% e de mortalidade de 120,7 por 100 mil. Se fosse um país, o estado de São Paulo estaria em situação pior que o Brasil. A comparação com outras regiões menos favorecidas é ainda mais reveladora. Na Região Nordeste, tanto a taxa de letalidade (2,3%) quanto a de mortalidade (92,7 por 100 mil) são menores que as paulistas. A letalidade da Região Norte é 2,2%, também menor que a de São Paulo. Portanto, os contaminados com o Sars-CoV-2 morrem mais em São Paulo que nas regiões Norte e Nordeste e mais do que no Brasil como um todo. O estado mais rico do Brasil contribui para aumentar as taxas de mortalidade e letalidade brasileiras!

Com a chegada, ainda limitada, das vacinas, a taxa de vacinação se tornou um parâmetro chave. Também até as 17 horas da última quinta-feira, São Paulo tinha vacinado 2,38% da população e era o quinto estado no ranking. A baixa taxa de vacinação paulista contrasta com a infraestrutura e recursos do estado.

Muitas perguntas surgem a partir desses dados. Por que se morre mais em São Paulo? Uma alta taxa de letalidade poderia, ainda, refletir uma baixa testagem. Em São Paulo se testa menos que os outros estados? Por que a vacinação está tão lenta em São Paulo?

Responder a essas perguntas certamente não é uma tarefa trivial, mas em São Paulo há cientistas credenciados para decifrar os dados, colocá-los em perspectiva, sugerir explicações e propor ações para minorar os efeitos desastrosos da pandemia no estado. Levar em conta a ciência na tomada de decisões é uma ótima prática, consenso em países desenvolvidos. Como São Paulo tem o sistema de ciência e tecnologia mais bem estruturado do país, seria natural que a administração utilizasse este potencial.

O governador João Doria tem usado performaticamente a palavra ciência. A qualquer pergunta sobre a pandemia, repete de forma propagandística o mantra que não é negacionista e que confia na ciência. Mas, em termos objetivos, será que há motivo para acreditar no seu apreço pela pesquisa científica? Os ataques da sua gestão às universidades estaduais paulistas e à Fapesp, fundação que financia boa parte da pesquisa feita em São Paulo, indicam que não, não dá para acreditar no governador. Há vários indícios do uso político e superficial da palavra ciência e da contradição entre discurso e prática.

O início da vacinação em São Paulo foi marcado pela presença do governador posando para foto com os primeiros vacinados, gerando muita aglomeração de gente. A festa se repetiu em várias cidades do estado. Não há nada de científico nisso, e a vacinação em si anda lenta e aquém do esperado. À luz dos dados, transparência, boa ciência e autocrítica fariam bem ao Plano São Paulo. Seria essencial responder de forma objetiva sobre os números nada abonadores do estado.

De olho nas eleições de 2022, o governador sequestrou a palavra “ciência”, reivindicando para si a exclusividade de seu uso e se apresentando como uma ilha de ciência num mar de gestores públicos negacionistas. O contraste entre os discursos vazios e as ações pouco científicas sugerem a prioridade mesquinha de polarizar com o governo federal, que, diga-se, não se esmera mesmo pelo respeito à ciência.

Não se combate a pandemia com narrativas e marketing. É tarefa da sociedade expor argumentos falaciosos que se tornam ainda mais perniciosos quando camuflados com verniz pseudocientífico. O negacionismo é um problema. O cientificismo fake, de ocasião, talvez seja ainda pior.

Hamilton Varela é professor titular do Instituto de Química de São Carlos da USP.

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