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| Foto: Saul Loeb/AFP

Não há como reescrever 1991, mas há uma forma de melhorá-lo.

Os fatos implícitos na alegação de Christine Blasey – a de que foi assediada sexualmente pelo jovem Brett Kavanaugh – continuarão a ser revelados ao longo do processo de confirmação. No entanto, é impossível ignorar as semelhanças entre o depoimento do juiz, em 2018, e o de Clarence Thomas, em 1991. Naquele ano, o Comitê Judiciário do Senado teve a oportunidade de demonstrar sua preocupação com a seriedade das alegações de assédio sexual e a necessidade de estabelecer a confiança pública no caráter do indicado à Suprema Corte – e fracassou em ambos.

Enquanto essa mesma comissão, à qual ainda pertencem alguns mesmos membros de quase três décadas atrás, leva adiante o procedimento de confirmação de Kavanaugh, a integridade do tribunal, o compromisso do país de lidar com a violência sexual como questão de interesse público e as vidas das duas testemunhas principais estão em jogo. Hoje, o público espera que o nosso governo faça mais do que em 1991. Na época, nossos representantes agiram de tal maneira que deram permissão aos empregadores para tratar as queixas de assédio no ambiente de trabalho de forma totalmente equivocada nas décadas seguintes. O fato de o Comitê Judiciário do Senado ainda não ter um protocolo de verificação de alegações de assédio e violência sexual surgidas durante esse processo sugere que pouco aprendeu com o ocorrido durante a nomeação de Thomas, muito menos com o movimento #MeToo, mais recente.

A maior conscientização sobre a violência sexual dos dias de hoje aumenta a responsabilidade de nossos representantes. Para se sair melhor, a comissão atual deve demonstrar uma compreensão clara de que a violência sexual é uma realidade social que os políticos eleitos devem combater. Uma linha justa, neutra e cuidadosamente definida é o único jeito de lidar com os depoimentos iminentes de Blasey e Kavanaugh. Os detalhes desse processo devem ser acompanhados por especialistas que dedicaram a carreira à compreensão da violência sexual. A função do comitê é a de buscar os fatos, servir melhor o público norte-americano e evitar que o peso do governo seja usado para destruir a vida das testemunhas chamadas a depor.

A maior conscientização sobre a violência sexual dos dias de hoje aumenta a responsabilidade de nossos representantes

Aqui vão algumas regras básicas que deve seguir.

Evitar jogar o interesse público pelo assédio sexual contra a necessidade de uma audiência de confirmação justa. Nosso interesse na integridade da Suprema Corte e na eliminação da falta de improbidade de conotação sexual, principalmente em nossas instituições públicas, são perfeitamente compatíveis. Ambos têm como objetivo garantir a legitimidade do funcionamento do nosso sistema judiciário.

Selecionar um órgão investigativo neutro, com experiência em casos de má conduta sexual, para investigar o incidente em questão e apresentar suas conclusões ao comitê. As conclusões desse tipo de averiguação são mais confiáveis e têm menos chances de serem consideradas tendenciosas em termos de partidarismo. Os senadores, por sua vez, têm de confiar, acatar e usar as conclusões dos investigadores e os conselhos dos especialistas para formular as perguntas para Kavanaugh e Blasey – e aqui também o papel que têm de reveladores de fatos deve basear seu comportamento. É o relatório final da investigação que deve guiar a audiência, e não a política ou os mitos sobre a violência sexual.

Que não se apressem as audiências. Tentar agilizá-las não só indicará que as acusações não são importantes, como a análise apressada da situação pode muito fazer com que fatos essenciais e necessários para a avaliação do público e do Senado sejam deixados de lado. Já o fato de a comissão pretender realizar uma sessão em 24 de setembro é desanimador. A verdade é que uma semana não é suficiente para a preparação de um inquérito tão importante sobre acusações tão sérias.

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Por fim, é preciso se referir a Christine Blasey Ford pelo nome. Ela já foi uma anônima, mas não é mais. Também não é “a que acusa Kavanaugh”. Blasey é um ser humano com vida própria. Merece o respeito de ser tratada e referida como a pessoa que é.

O processo é importante, mas não pode apagar ou diminuir a dificuldade do depoimento na TV, em cadeia nacional, sobre a violência sexual que Blasey diz ter ocorrido quando tinha quinze anos – e nem negar o fato de que, ao se sentar perante o comitê, estará em grande desvantagem em termos de recursos. Claro, cartas motivadoras de amigos e estranhos podem ajudar, mas não chegam nem aos pés do apoio organizado que Kavanaugh tem. E uma vez que tanto ele como ela têm a mesma obrigação de falar e provar a verdade, esse desequilíbrio não parece muito razoável.

Entretanto, apesar de ter a chance de defender o privilégio vitalício de servir o país em seu mais alto círculo jurídico, Kavanaugh tem o ônus da persuasão. Nada mais justo.

Em 1991, a frase “Eles simplesmente não entendem” se tornou uma forma popular de descrever a reação dos senadores à violência sexual. Com anos de retrospecção, inúmeras evidências da prevalência e dos danos causados a indivíduos e instituições, e um Senado com um número recorde de mulheres, “não entender” não é opção para nossos representantes eleitos. Em 2018, nossos senadores têm a obrigação de acertar.

Anita Hill é professora de Política Social, Direito e Estudos Femininos, de Gênero e Sexualidade da Universidade Brandeis em Waltham, Massachusetts.
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