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Há um ditado coreano que diz: “Começado é meio caminho andado”, que significa que, quando uma tarefa é muito complicada, começá-la já faz toda a diferença.

Apesar dos muitos tropeços da diplomacia pouco convencional de Donald Trump em relação à Coreia do Norte, é preciso lhe dar algum crédito. Há apenas cinco meses, baseado em conversas com esse governo, achei que tínhamos enveredado pelo caminho sem volta rumo a uma guerra devastadora.

O fato é que um ataque militar não encerraria o programa nuclear norte-coreano; ao contrário, geraria um conflito que os EUA teriam ganhado a um custo altíssimo, com centenas de milhares de mortes no Japão e na Coreia do Sul, incluindo também a de um sem-fim de norte-americanos.

Graças à diplomacia criativa do presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que forçou o Norte a sair do isolamento que se impôs, e à decisão impulsiva de Trump de se reunir com Kim Jong-un, no dia doze de junho o mundo testemunhou um encontro histórico entre dois países que juraram inimizade há quase 70 anos.

Não há boas opções de política em relação à Coreia do Norte, apenas possibilidades que vão de ruins a péssimas

Kim chegou mais cedo, como sinal de respeito ao seu interlocutor, que tem mais que o dobro de sua idade; Trump assumiu o papel do anfitrião mais velho, guiando Kim gentilmente à sala de reuniões, mostrando-lhe sua limusine e deixando claro à imprensa o clima de boa vontade de ambos. Esses toques pessoais na diplomacia de cúpulas desse tipo podem criar oportunidades únicas para o desenvolvimento de um nível de confiança que o protocolo padrão não consegue.

Sem dúvida, a declaração conjunta que os dois líderes divulgaram depois deixou muito a desejar; Kim não se comprometeu ao desmantelamento verificável e irreversível dos programas nucleares de seu país. Trump elogiou um ditador que, segundo a ONU, deveria estar no banco dos réus, diante do Tribunal Criminal Internacional por crimes contra a humanidade – e ainda pegou seu aliado sul-coreano de surpresa ao anunciar que cancelaria os exercícios militares conjuntos para ajudar a manter a paz na península. A oportunidade da foto cara a cara com o suposto “líder do mundo livre” legitimou de vez o Estado nuclear criminoso de Kim.

Entretanto, não há boas opções de política em relação à Coreia do Norte, apenas possibilidades que vão de ruins a péssimas.

A diplomacia trumpiana, ainda que pouco convencional, estourou a bolha de isolamento da liderança norte-coreana, coisa que nenhum outro presidente conseguiu fazer. O encontro de Singapura será lembrado na narrativa interna da Coreia do Norte como o momento de revelação de Kim enquanto líder do mais novo Estado nuclearmente armado do mundo. Porém, os EUA definiram a agenda para os próximos passos, com as negociações subsequentes lideradas pelo Secretário de Estado Mike Pompeo. E Trump implicitamente estabeleceu o segundo semestre como primeiro prazo para cumprimento dos compromissos, com uma promessa de convite à Casa Branca, presumivelmente na mesma época da Assembleia Geral da ONU, em setembro.

Carlos Ramalhete: As Coreias e a paz (publicado em 4 de janeiro de 2018)

Bruno Garschagen: Trump e Coreia do Norte: diplomacia com testosterona (publicado em 27 de abril de 2018)

Trump agora precisa que a Coreia do Norte forneça uma declaração íntegra de seu arsenal nuclear para que seja verificado por inspetores internacionais. Depois disso, Kim terá de eventualmente começar o processo de desmantelamento e remoção das armas. A comunidade internacional, apesar da ambivalência em relação a Trump, terá de apoiar o presidente norte-americano para garantir que o Norte cumpra suas obrigações.

As concessões de Trump deixaram muitas dúvidas: com que tipo de garantias de segurança os EUA estão concordando? Os norte-americanos vão acabar retirando suas forças da península em troca da desnuclearização? E por que os EUA não insistiram em nenhuma concessão de direitos humanos como parte do acordo?

Entretanto, apesar dos muitos buracos, a cúpula de Singapura representa o início de um processo diplomático que nos afasta de uma guerra iminente.

A Coreia do Norte não vai mais testar nenhum míssil ou bomba nuclear no desenrolar dessa fase, e o diálogo liderado por Pompeo com sorte levará ao encerramento do programa nuclear mais fugidio e perigoso do mundo atualmente.

Flávio Gordon: A regra de ouro de Gioconda Brasil: Trump e a imprensa brasileira

Para Pyongyang, não faz diferença quem ganhou as eleições presidenciais norte-americanas de 2016; o país teria conduzido testes de mísseis balísticos e da bomba de hidrogênio de qualquer forma. Um presidente mais convencional talvez não tivesse “quebrado o molde”, tentando solucionar o problema com um encontro direto com um ditador coreano. A abordagem truculenta de Trump deixa muito a desejar em termos da política externa dos EUA, mas não havia outra opção para a obtenção desse resultado pouco satisfatório, mas pelo menos digerível.

Pela primeira vez desde 1953, a porta se abre para a paz na Península Coreana – ainda que possa perfeitamente se fechar novamente, em um futuro breve, se o comportamento do Norte for um indicador preciso do que pode vir a seguir. A cúpula de Singapura foi um início modesto. É só o começo, mas, como dizem os coreanos, é meio caminho andado.

Victor Cha, ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança para a Ásia, é professor da Universidade Georgetown e assessor do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos.
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