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Não é de agora a percepção de que os índices educacionais brasileiros apontam para uma tendência de queda. Seja na análise da alfabetização no ensino básico, do grau de analfabetismo funcional no ensino superior ou dos índices de desemprego e evasão por área de conhecimento, há alguns anos o quadro parece não apresentar sinais de melhora. De maneira especial, mesmo que tais sintomas sejam observados em diversas áreas, são dirigidos às ciências humanas dúvidas sobre sua utilidade, parcialidade e rentabilidade. Questiona-se, sobretudo, o que se pode esperar de disciplinas que deveriam ser voltadas a compreender o homem, descrever a realidade e valorizar o conhecimento além da utilidade.
Já há algumas décadas, diversos autores apontam para uma crise nessa área e criticam as paixões das massas que balizaram as decisões acadêmicas na década de 1960. Ligadas às universidades americanas e apoiadas pelos docentes da época, essas decisões afetaram diversas disciplinas como Letras, Sociologia, Filosofia e História, que passaram a aplicar conteúdos abstratos, focados na promessa de “crescimento e desenvolvimento individual”. Em seu bestseller de 1987, The Closing of the American Mind, Allan Bloom considerou que as faculdades de ciências humanas passaram a se curvar às “vulgaridades presentes na sociedade em geral”. As vaidades igualitárias teriam retirado dos currículos e das grades educacionais todo tipo de conteúdo que não corroborasse os gostos do momento.
Aquele que busca respostas através das humanidades ou que procura lecionar um conteúdo voltado à ciência se depara com a incompletude dos programas curriculares, restando à aquisição de conhecimento humanístico depender do instinto e da sorte
Tal efeito não foi, portanto, apenas fruto de doutrinas ideológicas infiltradas nas IES em vista de uma guerra cultural, mas sim derivado da tentação da virtude fácil, da evitação de confrontos e da proteção de cargos. Sobretudo, o desmantelamento curricular nessas disciplinas foi resultado da leniência de docentes e gestores que, diante dos barulhos sociais e políticos do século passado, optaram por lançar fora as bases do conhecimento que sustentavam o debate e a explicação da realidade em prol de um “acordo de paz” com a opinião pública. Como aponta o autor, no lugar de um programa educacional voltado a oferecer um percurso intelectual e as bases teóricas para a reflexão moral, impôs-se uma estrutura curricular mais dogmática que a anterior, carregada de trivialidades e conformismo.
Após aproximadamente 70 anos, a grande preocupação não é mais com os movimentos de estudantes ou de massas mapeados por Bloom. Interessa-nos, antes, a previsão feita pelo autor que se realizou: o esvaziamento dos planos de ensino e o engessamento dos profissionais. Encontramo-nos, pois, diante de um abismo quando olhamos os currículos das humanidades – abismo que nos olha de volta a cada estatística do INAF, do IDEB, do SAMESP e de outros índices e institutos –; e quando buscamos um programa que apresente ao aluno mais esclarecimentos do que obscurantismos, nos deparamos com um universo de “se”.
A administração das IES, se estiver livre da pressão das inúmeras teses políticas e “inovações” pedagógicas, iria encontrar dificuldade em selecionar mão de obra qualificada. Os alunos, se tiverem sorte em encontrar um professor qualificado, esbarrarão na diversidade de interesses presente na turma, que faz com que as aulas soem avulsas e superficiais. A turma, se estiver em uma instituição que possibilite o desenvolvimento intelectual real, encontrará a barreira do mercado que não a estimula profissionalmente e não a absorve, ampliando o número de eternos bolsistas, de desempregados e evadidos das áreas. O docente, se for bem qualificado, logo perceberá que é impossível aplicar adequadamente um currículo que não possui fundamentos prévios (as bases do conhecimento não foram ensinadas) e, menos ainda, continuidade (não será possível dar sequência nas matérias e garantir a qualidade).
Sobre esse último, responsável por organizar o currículo e avaliar o conhecimento, ainda pesa uma política educacional centralizada. Se conseguir atar um programa aos critérios do MEC, esbarrará nos critérios internacionais, comumente ditados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Se tiver sucesso em conciliar ambos, será cobrado pelo mercado por um saber rápido, fácil e utilitário. Se lograr construir um programa com apelo mercadológico, enfrentará o desafio de recuperar os alunos de anos de uma educação básica defasada.
No fim, aquele que consegue chegar a esse ponto empregado e sem adquirir nenhuma inimizade ou conflito com os pares será sobrecarregado pelo trabalho burocrático que tem como objetivo atender àqueles primeiros dois critérios. A conclusão desse ciclo é que o conteúdo humanístico fica a ser lecionado “como der”, enquanto a métrica passa a ser ou “aquilo que está na moda” ou aquilo que “gera estatística”.
Podemos apontar como causas disso o relativismo e o historicismo, que maltrataram as faculdades durante quase 70 anos e confundiram as finalidades das ciências humanas. Aponta o autor que, até meados da década de 1940, ainda podia-se esperar que as disciplinas das humanidades oferecessem meios para que o indivíduo compreendesse o cotidiano e a realidade, além de lhe servir de reflexão moral, objetivos que faziam com que o campo se tornasse atrativo.
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Desde que o niilismo intelectual se enraizou nos currículos nos idos de 1960, as humanidades não despertam mais o interesse da sociedade nem dos alunos. Assim como a música, a arte e a literatura, paulatinamente os currículos deixaram de oferecer respostas válidas e perderam a originalidade, encontrando-se hoje padronizados, generalizados e relegados ao campo das curiosidades populares ou das ambições políticas.
Assim, retomando a metáfora de Allan Bloom, hoje em dia lidar com as ciências humanas nas instituições formais de ensino é como fazer um passeio pelo Mercado de Pulgas de Paris, onde ocasionalmente é possível encontrar coisas valiosas. Um programa curricular sólido, um projeto ligado à busca por conhecimento científico e alunos com curiosidade legítima, dispostos a deixar de lado a pergunta “mas para que eu vou usar isso?”, tornaram-se acidentes de percurso e surpresas. Por fim, o cenário real é que aquele que busca respostas através das humanidades ou que procura lecionar um conteúdo voltado à ciência se depara com a incompletude dos programas curriculares, restando à aquisição de conhecimento humanístico depender do instinto e da sorte.
Rodolfo Nogueira da Cruz é doutor em História pela UNESP, professor em cursos de Comunicação Social e Direito, e autor dos livros Escritos para ordenar o clero no reino de Castela e O Confessional e A Exposição da Missa de D. Afonso de Madrigal, o Tostado.



