Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

“Conhece-te a ti mesmo”: o mandamento esquecido da alta política

Estátua de Sócrates na Academia de Atenas. Obra de Leônidas Drosis. (Foto: Anne O'Sullivan/Pexels)

Ouça este conteúdo

"Conhece-te a ti mesmo" é o aforismo inscrito no pórtico do Templo de Apolo em Delfos (Pausânias, Descrição da Grécia). A frase foi atribuída a vários sábios antigos (Diógenes Laércio, Vidas e Opiniões dos Ilustres Filósofos). Em um dos diálogos de Platão, Sócrates aconselha seu jovem amigo Alcibíades, que deseja ingressar na política, a meditar sobre essa inscrição délfica (Platão, Alcibíades).

Conhecer a si mesmo não é, obviamente, conhecer o próprio corpo, mas a própria alma. E por que alguém se conheceria? Que necessidade haveria disso se a coisa mais óbvia para nós somos nós mesmos?

E, claro, gostaríamos de saber por que esse autoconhecimento é tão relevante para a política, onde o que importa é a nossa relação com os outros. A resposta a essas perguntas provavelmente começa a emergir nas palavras do poeta latino Juvenal (60-128 d.C.), para quem esse mandato “desce do céu” (Juvenal, Sátiras).

Viver juntos

A propósito, o preceito délfico não significa que a interioridade — pelo menos como a entendemos hoje — fosse uma preocupação central da filosofia grega, que estava muito mais atenta ao nosso caráter de comunas vivas.

Viver, para os gregos, é essencialmente coexistir, viver ao lado dos outros. E o mesmo é verdade para os romanos, povo que, como nenhum outro, compreendeu nossa natureza convivial, como sustenta Hannah Arendt (Arendt, H., A Condição Humana).

Em latim, viver também se diz inter homines esse — estar entre os homens — e morrer inter homines esse desinere — deixar de estar entre os homens — (Cícero, De Officiis).

O foco estava na perfeição das comunidades onde encontramos nosso lugar no mundo, não na introspecção isolada. Não é por acaso que, entre os gêneros literários antigos e mesmo medievais, o romance, por exemplo, não aparece, já que nele o protagonista é exclusivamente humano (sobre a ausência do romance como gênero na Antiguidade, ver: Auerbach, E., Mimesis).

O surgimento do cristianismo abre uma dimensão de reflexão filosófica que não foi desenvolvida pela sabedoria grega, mas não menos intuída. E então, por que deveríamos nos conhecer? Aqui, parece emergir uma tensão entre o nosso ser-com-os-outros e o nosso ser pessoal.

Com o cristianismo, começamos a compreender melhor aquele mandamento que “desce do céu”, do qual falava Juvenal.

VEJA TAMBÉM:

Uma descoberta dentro de nós

O autoconhecimento cristão é, antes de tudo, um convite à descoberta de Deus em nós, não um recolhimento do eu em si mesmo. Esta é a brilhante intuição de Santo Agostinho (354-430), que oferece, de forma sistemática e rigorosa, a resposta mais sábia à pergunta “conhece-te a ti mesmo”: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova...” (Santo Agostinho, Confissões).

Temos deslizado em direção a uma política centrada na “identidade”, entendida como a busca por algo semelhante a nós mesmos.

Nada poderia estar mais distante da interioridade descrita por Rousseau (1712-1778). Podemos afirmar, sem medo de exagero, que Jean-Jacques Rousseau é o descobridor dessa nova interioridade que se recolhe em si mesma e onde a presença de Deus se eclipsa (Rousseau, J.-J., Confissões). Não é por acaso que o pensador genebrino se expõe a isso em uma obra que leva o mesmo título daquela em que Santo Agostinho fala dessa descoberta de Deus no fundo do nosso coração: Confissões.

E qual é a consequência de deslocar Deus desse conhecimento de nós mesmos? Primeiro, o desencanto; segundo, a hipertrofia de nossos gostos como critério para legitimar nossas vidas, nossas decisões e até mesmo nossa maneira de ver a política.

Eu disse anteriormente que o gênero literário do romance é impensável na cultura antiga, mesmo na cultura medieval, devido à sua ênfase em um protagonista meramente humano.

Recordemos a atitude de Ivan Karamázov no memorável episódio “O Grande Inquisidor” de Os Irmãos Karamázov. Ivan não nega Cristo, mas, em vez disso, “respeitosamente devolvo o bilhete a você”, diz ele a seu irmão Aliócha (Dostoiévski, F., Os Irmãos Karamázov).

Assim, sem pressa nem pausa, temos deslizado em direção a uma política centrada na “identidade”, entendida como a busca pelo que é igual a nós mesmos.

Mesmo a política do século XXI não é mais concebida como uma luta entre direita e esquerda, mas como um instrumento de reivindicação da “identidade” (ver: Fukuyama, F., Identidade: A Demanda por Dignidade e a Política do Ressentimento).

Nada poderia estar mais distante do centro divino que habita em nós. E nada poderia estar mais distante da paz que Ele nos deixa.

Não é coincidência que as políticas identitárias estejam frequentemente na raiz de guerras injustas

Se a divindade habita nos outros, como em nós, devemos tratá-los com o respeito devido aos portadores dessa presença.

É muito fácil afastar Deus de nós mesmos, pois Sua maneira de agir é silenciosa. Alguns, às vezes, reclamam que Ele é silencioso demais, mas não é que amamos demais o barulho? O Menino-Deus nasce à noite, em silêncio, em um lugar escondido, indefeso e frágil. E é assim que Ele se faz presente em nossas vidas.

Conhecer-nos a nós mesmos: uma exigência da alta política

Conhecer a nós mesmos é, portanto, um requisito da alta moralidade. Isso implica que devemos ser capazes de recriar em nós mesmos a humildade, o silêncio e a reverência devidos a essa presença divina, não apenas em nossa interioridade pessoal, mas também na dos outros.

Portanto, “conhece-te a ti mesmo” também constitui um requisito da alta política, como Sócrates intuiu. Se a divindade habita nos outros, como também em nós, devemos tratá-los com o respeito devido aos portadores dessa presença.

©2025 Revista Suroeste. Publicado com permissão. Original em espanhol: Conocerse a sí mismo

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.