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Coronavírus mata crianças e jovens
Crianças usam máscaras no aeroporto.| Foto: Orlando Sierra/AFP

Antes de mais nada, é imprescindível invocar Bordieu: descrever um dado estado de coisas ou pensar sobre ele não significa chancelar os valores nem as ideias de quem deu azo à situação calamitosa. Esse trigger warning é relevante, na medida em que atualmente todo o debate acerca da gravíssima pandemia parece simplificado a um jogo sectário, num maniqueísmo cientificamente inexato, ainda que partidariamente útil, além de perigoso. O discurso público tende a estigmatizar os interlocutores como negacionistas ou como totalitários irremediáveis, o que torna o debate honesto muito difícil.

No ano passado, Giorgio Agamben publicou uma série de textos sobre os riscos de as medidas tomadas para combate à pandemia de Covid-19 desaguarem em autoritarismo e totalitarismo. Dentre os trabalhos anteriores de Agamben, há estudos sobre o estado de exceção e sua relação com a soberania e a ausência absoluta dela, personificada na figura do “homem sagrado” ou Homo sacer do antigo Direito Romano. Penso que o simples fato de nos preocuparmos com os efeitos de longo prazo da manutenção prolongada ou perpétua de um estado de exceção não nos faz negacionistas, de “direita”, de “esquerda”, nem antivacinação. Não há qualquer relação de causa e de consequência. É plenamente possível preocupar-nos com a nossa saúde e a saúde de nossos semelhantes, e, ao mesmo tempo, zelar para que a pandemia não se transforme num pretexto invencível a justificar violações reiteradas de direitos. Aliás, é chapado o dever de vacinação ampla como estratégia de interesse público. Economicamente, anti-vaxers são contraproducentes, além de humanitariamente obtusos.

Mesmo antes da pandemia, já havia sinais da tomada de alguns atos típicos do estado de exceção, por instituições componentes de todo o espectro estatal. Tecnicamente, um estado de exceção forma-se na suspensão das regras ordinárias e extraordinárias devidamente previstas para lidar com as situações do dia a dia, com o pretexto de combater um quadro inédito e extremamente perigoso. Basta a interlocutores qualificados chancelar o ineditismo e a extremidade da situação, numa perspectiva própria de Stichcombe. A probabilidade e a verossimilhança da ameaça são irrelevantes, pois, diante do caráter aberto da linguagem, com sua vagueza e ambiguidade, não é difícil torturar os textos legais até que eles entreguem o sentido que se deseja obter. Ainda não falávamos de reação à crise sanitária, mas apenas de movimento de proteção frente às ofensas percebidas (e recíprocas – cada instituição pautou-se pela desconfiança em relação às demais).

No momento em que deflagrada a pandemia, a tendência à intensificação de instrumentos de exceção foi acentuando-se. A legislação brasileira não tinha uma resposta à crise sanitária. A Constituição previa as situações extremas de estado de sítio, estado de defesa e de intervenção federal. A previsão do estado de calamidade de grande abrangência é inovação recente, de 2021. Uma dúvida jurídica razoável era se a Constituição permitiria suspensões temporárias de direitos fundamentais, como o direito de ir e de vir, por ato praticado por autoridade que não o presidente da República, e, ainda assim, se decretados os estados de sítio ou de defesa. Afinal, o direito de locomoção, em tempo de paz, é imanente à ideia republicana.

Não desejo entrar na discussão sobre o acerto ou o desacerto da ação ajuizada pelo presidente da República contra os decretos que limitaram o direito à locomoção. O ponto aqui tratado é meramente descritivo: os demais poderes e entes federados sentiram-se desamparados e expostos pela conduta da Presidência da República; a um só tempo, julgaram que a Presidência não estava a dar a resposta necessária à crise (inaptidão), por um lado, e, pelo outro, entenderam que estavam ameaçados por arroubos totalitários. É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal descentraliza as ações de combate à pandemia, com o objetivo de assegurar autonomia aos entes federados periféricos.

Ocorre que, para debelar uma crise de proporções pantagruélicas num território continental, faz-se necessária alguma centralização. Infelizmente o Judiciário não tem os instrumentos adequados para enfrentar tecnicamente o problema, tampouco para mensurar as consequências prováveis de suas decisões. Com um pouco mais de percuciência, a corte teria tomado providências adicionais, dada a insuficiência da descentralização pura e simples.

A ausência de informações precisas dificulta uma análise adequada da situação, e os mais avessos ao risco tenderão a “pecar” pelo excesso de salvaguardas (embora seja difícil considerar um eventual excesso de cautela um pecado). Na melhor das hipóteses, as informações são desencontradas e sempre sujeitas à infirmação. Isso eleva o grau de insegurança. De fato, todos os níveis de governo parecem perdidos num solilóquio. Em posições extremas, o governo federal quer convencer que tomou todas as medidas necessárias para debelar a crise, em contradição com o discurso anterior, de que vivíamos apenas um “estado de ameaça” ficcional (na expressão de Patrick Zylberman); ao passo em que os governos locais dizem que, de fato, já vivemos numa distopia apocalíptica.

Soa um tanto herético, mas a dificuldade de obtenção de informações também cria uma dependência maior em relação aos médicos. Agamben preocupa-se com a matéria, ao equiparar a medicina à prática semelhante à religião. Com ares benfazejos e de profundo conhecimento, os médicos adquiririam a capacidade de ditar regras cuja validade seria difícil de aferir. Teme-se que aqueles que insistam em buscar a verdade, seja para confirmar o diagnóstico geral, seja para infirmá-lo, acabem estigmatizados como propagadores de fake news (e não de fake ideas, como lembra Agamben, pois as notícias são mais importantes que as ideias).

De seu lado, o Executivo federal também conclui estar sitiado. Discursos tanto ostensivos quanto indiretos (nas redes sociais ou por intermediários) afirmam que o Legislativo e o Executivo não permitem ao presidente da República cumprir com seu plano de governo. Ademais, tanto o Executivo como o Legislativo sentem-se reféns do Judiciário, em razão dos inúmeros inquéritos e ações penais mantidos abertos contra seus membros. Politicamente, a tendência seria a acomodação, num equilíbrio conhecido como “Mexican Standoff” (equilíbrio em que nenhuma das partes tem vantagem em tomar a iniciativa para o ataque, de modo que a simples ameaça se torna a opção mais racional). Mas não é o que tem ocorrido; o acirramento continua a crescer, sem previsão de acomodar-se.

Diante da gravidade da pandemia e do iminente risco à vida, alguns estão dispostos a tolerar eventuais abusos, desde que por um tempo curto. Eis nossa preocupação. Devemos acompanhar com atenção, para que o estado de exceção temporário não se torne perene. Se o estado de exceção perdurar, corremos o risco de tomá-lo pelo natural e aceitar cada vez mais violações aos direitos fundamentais. Ainda é cedo para um juízo seguro acerca do tradeoff entre legalidade e segurança, mas nunca devemos abrir mão do direito de receber informações completas e de questionar livremente qualquer posição governamental.

Thiago Sorrentino, mestre e doutorando em Direito, é professor do IBMEC/DF e foi assessor de ministros do STF por uma década.

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