
Ouça este conteúdo
Quem se preste a descrever o conservadorismo enquanto corrente filosófica, com honestidade intelectual e sem apelar para os estereótipos corriqueiros, seguramente vai esbarrar em algo nestas linhas: mais do que uma cartilha política, trata-se de uma disposição, uma postura diante da realidade. Um olhar que desconfia de promessas utópicas e líderes messiânicos.
Assim o definem os próprios fundadores do conservadorismo moderno: “O conservadorismo é a negação da ideologia: é um estado de espírito, um tipo de caráter, uma maneira de olhar para a ordem social civil”, descreve o filósofo americano Russell Kirk. “Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, o experimentado ao inédito, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante”, complementa o britânico Michael Oakeshott.
É de autoria de um conterrâneo, porém, a definição de “conservadorismo” que melhor nos serve neste artigo: “no fundo, o conservador não é um homem que quer voltar ao passado – mas que deseja chegar vivo e em boas condições ao futuro”, diz o mineiro João Camilo de Oliveira Torres.
Ora, não é possível chegar vivo e em boas condições ao futuro – na verdade, não é possível chegar a futuro algum – sem cuidar das pessoas – e, por extensão, das famílias, afinal, são elas o lugar de cuidado privilegiado na sociedade.
Cuidar no século XXI, porém, é diferente de cuidar nos tempos em que Kirk, Oakeshott ou mesmo o britânico Roger Scruton, falecido ainda em 2020, teceram suas defesas ao conservadorismo.
Hoje, vemos cada vez mais países lançando mão de medidas desesperadas para convencer famílias a terem mais filhos, enquanto o número crescente de idosos pressiona a previdência, a saúde e os serviços pouco preparados para populações que envelhecem rapidamente e sobrecarregam as gerações intermediárias – especialmente as mulheres.
Isso sem contar, naturalmente, as particularidades de cada nação: no Brasil, apenas uma em cada cinco pessoas tem condições de contratar qualquer apoio, seja para cuidar de filhos, da casa ou de pais idosos. Pode-se e deve-se criticar os serviços públicos o quanto se queira: hoje, a maioria dos brasileiros depende deles para cuidar e ser cuidada.
Por essas e muitas outras razões, faz pensar o porquê de tanta preocupação com a definição de uma família, e tão pouco com os problemas reais que assolam a maioria das famílias do Brasil.
Não é que aquele debate não tenha sua importância – pelo contrário, é fundamental –, e há parlamentares e organizações civis bastante envolvidas no tema. Mas, tomando por base uma outra premissa conservadora – “a consciência de que as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas”, descrita por Scruton –, se queremos construir um país em que as famílias sejam capazes de cuidar de seus membros, é preciso atentar-se também ao que se pode fazer em conjunto, nas pontes que se pode construir em prol do bem comum.
VEJA TAMBÉM:
Os dados não mentem: a família, como instituição, está em profunda crise e precisa de apoio – a ruína da família é a ruína de todos nós
Recentemente, por exemplo, o governo regulamentou a Política Nacional de Cuidados, que foi aprovada como lei pelo Congresso Nacional em 2024. Em teoria, trata-se de um plano nacional para valorizar e apoiar o trabalho invisível de cuidar — de crianças, idosos, pessoas com deficiência e doentes.
O decreto prevê metas, orçamento e acompanhamento, com ações como ampliar vagas em creches e escolas integrais, criar centros-dia para idosos, oferecer cursos e certificações a cuidadores e facilitar a conciliação entre trabalho e cuidado.
Não há uma fórmula pronta, nem mesmo uma cartilha de como fazer: os estados e municípios são convidados a, à sua maneira, aderir ao plano e elaborar suas próprias ações.
Note-se que o objetivo deste artigo não é elogiar o governo: ao contrário, é uma provocação para que a valorização do exercício do cuidado não seja prerrogativa de um partido ou de um lado ideológico – o que seria uma tragédia e uma injustiça para com os brasileiros das mais variadas convicções que precisam e merecem ser cuidados.
A própria natureza da política enseja o engajamento local e comunitário, que também deveria ser prioridade para os que se interessam por construir e conservar o bem comum não com base em ideais abstratos, mas nas necessidades de suas famílias, seus bairros e cidades.
Seja com esta ou outras medidas concretas em debate em Brasília, nas assembleias estaduais ou câmaras municipais, o convite é à informação, compreensão e envolvimento.
O compromisso de um conservador com o futuro passa por reconhecer e sustentar o trabalho silencioso e invisível que constrói um país capaz de chegar vivo — e em boas condições — ao amanhã.
Chegou a hora de fazer com que o reconhecimento da família como base da sociedade saia da teoria e chegue à prática: que trabalhemos para que o apoio de que cada família precisa seja prioridade de todos os governos.
Rodolfo Canônico é diretor-executivo do Family Talks.



