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Criptomoedas
Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Em agosto deste ano, a Instrução Normativa 1.888/2019 completará dois anos em vigor. Muito criticada à época de sua promulgação, foi responsável por criar a única obrigação acessória mensal que as pessoas físicas que operam com criptoativos têm no Brasil atualmente: declarar todas as suas movimentações de criptoativos que não sejam realizadas através de exchanges – entidades intermediadoras de criptoativos – nacionais, quando suas movimentações excederem R$ 30 mil.

Mas ela não para por aí. Obriga também as empresas a declararem suas movimentações com criptoativos nos mesmos moldes, e vai além: se a empresa, “ainda que não financeira” nos termos da instrução, intermediar operações com criptoativos ou viabilizar plataforma para esse fim, torna-se obrigada a declarar todas as operações realizadas por seus clientes, bem como seus saldos anuais em criptoativos e em moeda fiduciária em posse dela, se houver.

Além de atacar a privacidade das operações de criptoativos dos contribuintes domiciliados no país, também merece críticas por outros motivos. É ambígua e confusa, ao mesmo tempo que estabelece punições financeiras para quaisquer erros na entrega da declaração. Por exemplo, enquanto obriga pessoas físicas e empresas a declararem o valor associado a quaisquer movimentações com criptoativos, é imprecisa quanto à forma pela qual o contribuinte deve apurar esse valor, o que nos leva a indagar como declarar essas operações tendo em vista que o preço de um criptoativo pode variar entre exchanges, pode ser estabelecido em contratos privados, ou pode simplesmente não existir, quando, por exemplo, uma pessoa transfere um bitcoin entre suas próprias carteiras. Mesmo que adotemos um critério (digamos, o valor de mercado no momento da transação), não existe uma referência. Assim, o contribuinte assume o risco de definir um valor e, se a Receita considerar que ele errou, poderá, a seu próprio juízo e (desconhecido) critério, multá-lo.

Na prática, essa instrução traz ineficiência, pois implica em mais um ônus financeiro ao contribuinte, pelo tempo gasto para gerar a declaração, bem como pelo armazenamento de todos os registros que comprovem sua boa fé ao prestar as informações nela exigidas. Mais do que isso: traz em seu bojo risco jurídico a todos que realizam operações de criptoativos no país.

Mas são justamente essas imperfeições que evidenciam o que me parece ser a pior parte desta instrução. Observe o leitor que, ao definir a obrigatoriedade da entrega da declaração apenas para pessoas físicas e empresas que operam sem exchanges, ou com exchanges no exterior, ela cria uma possibilidade para fugir desse ônus financeiro e risco jurídico: basta que realizemos todas as operações em exchanges domiciliadas em nosso país. Portanto, essa norma tende a beneficiar o interesse de determinado grupo privado. Isso nos faz refletir: essa é a finalidade de uma norma?

Em seu livro A Lei, o economista e jornalista francês Frédéric Bastiat (1801-1850) lança luz a essa pergunta. Ele parte do princípio de que o homem é composto de sua “existência”, isto é, de sua “personalidade”, da qual derivam suas “faculdades”, ou sua “liberdade” para agir e aplicá-las, levando-o à “assimilação”, isto é, à “apropriação” que o leva a ter “propriedade”. Da combinação destas três últimas, “eis o homem”, nas palavras do autor. E, sendo o homem delas constituído, é seu direito defendê-las com o uso de sua força.

Portanto, é dessa construção que deriva a Lei, com “L” maiúsculo. Para Bastiat, a Lei não seria nada além da organização coletiva desse direito individual. Sua existência só seria legítima, portanto, para garantir “as pessoas, as liberdades e as propriedades”. Contudo, ele constata que não era isso que acontecia na sociedade em que vivia, pós-Revolução Francesa. O governo francês à época, de maneira muito similar aos governos atuais, utilizava-se da lei, com “l” minúsculo, para perverter justamente sua finalidade original: a lei não mais defende os direitos individuais originais do homem, mas sim neles interfere diretamente.

Bastiat associa a origem desse uso indevido da lei a dois fatores. O primeiro, que chamou de “egoísmo ininteligente”, é a vontade humana de viver e se desenvolver à custa dos outros. O segundo, a “falsa filantropia”, que se produz ao obrigar alguns homens a cederem parte de suas propriedades aos outros, com o intuito de promover igualdade. Com isto, dá-se à lei justificativa para violar os direitos individuais. É o que o autor chamou de “espoliação legalizada”, uma vez que, por meio da lei, autoriza o uso da força coletiva do Estado para se apropriar indevidamente das liberdades e propriedades dos indivíduos contra a sua vontade.

E aí reside outro problema: ao permitir que a lei viole os direitos individuais, que poder tem quem as elabora, ou seja, seu “legislador”? Bastiat destaca os riscos que daí decorrem. Ele discorre sobre como constrói-se a imagem de que aqueles que produzem as leis estão acima daqueles que devem segui-las. Seriam seres superiores aos demais, cujo brilhantismo lhes daria capacidade para moldar todos os outros indivíduos à sua volta? Seriam “oleiros” e os outros “sua argila”, nas palavras do autor, com o objetivo de fazer prevalecer seus interesses privados em detrimento dos demais?

Se retornamos à Instrução Normativa 1.888, não seria ela um exemplo disso? Se analisada com cautela, percebe-se que é um instrumento que espolia a liberdade dos indivíduos de operarem criptoativos com privacidade, da forma que bem entenderem. Mas, mais do que isso, demonstra como a utilização da força da lei pode beneficiar um grupo de interesse privado, posto que torna operações por meio de uma exchange nacional econômica e juridicamente mais atrativas do que seriam caso essa lei não existisse. Cria uma anomalia artificial no mercado e afasta a lei de seu propósito original.

Neste aniversário de dois anos da referida instrução, é urgente que, em vez de celebrar, busquemos aboli-la de imediato.

Guilherme Zamur é mestre em Administração, empreendedor e fundador do site Fiscal Cripto, dedicado a ajudar investidores de criptoativos a entregar suas declarações, e associado ao IFL-SP.

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