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Direita ou esquerda, Bolsonaro ou Lula, conservadorismo ou progressismo – o Brasil tem vivido anos de uma aparente infindável polarização. As opções eleitorais e inclinações partidárias tornaram-se um dos elementos centrais nas identidades tribais e nas fragmentações sociais. A recente estratificação social brasileira é de caráter político e ideológico e afeta a todos, cristãos ou não.
Em Verdade e Método, Gadamer argumenta que a dissociação entre tradição e razão é impossível, de modo que os pressupostos, ou preconceitos, são inevitáveis em todo ato interpretativo. Desse modo, somos inevitavelmente afetados, ainda que minimamente, por uma série de aspectos da cultura em que vivemos. De modo semelhante ao impacto do racionalismo aplicado aos estudos bíblicos – que contribuiu para o surgimento do deísmo –, o messianismo político, as metanarrativas ideológicas, a dogmatização do discurso político e a subsequente polarização influenciaram a relação da Cristandade com as esferas de poder. Isso acabou por gerar um novo ethos teológico moldado pela guerra cultural e pela teologia do domínio.
Um determinado personagem político ou algum grupo partidário específico foi identificado com a Cristandade e, por vezes, com peso autoritativo. A despeito de qualquer questão teológica ou ética quanto às escolhas políticas, o objetivo deste texto é abordar a relação da teologia e das comunidades paulinas com a política imperial vigente durante a redação das epístolas paulinas, traçando um paralelo com práticas contemporâneas.
De modo análogo ao título desta seção, a teologia e a práxis paulinas possuem uma natureza paradoxal no que tange à teologia política. Paulo aparenta ser, simultaneamente, “pró” e “anti” Império. Ao contrário de muitos de seus conterrâneos, Paulo não nutria uma forma de teologia macabeia e zelota revolucionária, na qual o domínio imperial seria subvertido por uma revolta popular violenta.
A relação da Cristandade com as autoridades governamentais deve se expressar em respeito, fidelidade no pagamento de tributos e em um posicionamento público condizente com toda a revelação bíblica
O texto de Romanos 13.1-7 apresenta – de certo modo – uma perspectiva paulina pró-imperial. O apóstolo orienta a igreja romana a submeter-se às autoridades governamentais (13.1), fundamentando tal postura na convicção de que os governos são instituídos por Deus. Essa afirmação está em conformidade com os escritos veterotestamentários (Pv 8.15-16; Dn 2.21), bem como com o próprio ensinamento de Jesus (Mt 22.21).
O mais impressionante, contudo, é o fato de Paulo exortar os cristãos romanos à submissão a governante pagão, cujas decisões governamentais e conduta foram, em inúmeras ocorrências, reprováveis. Nero, o imperador em exercício durante a redação da epístola, era uma figura controversa que viria executar suas ações mais infames na década seguinte. Independentemente da figura que ocupava o trono, o próprio conceito de imperador – e suas implicações religiosas – era ofensivo tanto para judeus quanto para cristãos.
O fato de estarem sujeitos a Roma era horrendo e insuportável para uma parcela cada vez maior de judeus espalhados pelo Império. Ademais, conforme argumenta Neil Elliott em Paulo e o Império, é possível que alguns dos judeus residentes em Roma – inclusive parte dos que aderiram ao movimento de Jesus – fossem simpáticos ao crescente ardor revolucionário dos judeus palestinos.
Segundo o historiador Tácito, havia um descontentamento popular diante das pesadas taxas impostas por Nero. Além de viverem sob domínio pagão, os judeus tinham de pagar impostos elevados para um governante que não pertencia à linhagem davídica e abraâmica.
Em meio a tantos pesares e dificuldades impostas pelo Império, Paulo afirma que toda autoridade governamental é estabelecida por Deus (13.1) e que tais autoridades – incluindo o próprio Nero – são servas de Deus (13.4). Quanto a isso, Michael J. Gorman afirma: “Se Paulo aparentemente transformou um inimigo do povo de Deus em agente de Deus, ele o fez de acordo com sua tradição, na qual os inimigos de Deus podem ser frequentemente também agentes divinos (e.g., Egito, Assíria e Babilônia)”. Desse modo, os cristãos, quer de origem judaica ou gentílica, deveriam pagar seus impostos (13.6) e respeitar as autoridades (13.7), sem, contudo, divinizá-los ou consentir com seus equívocos.
Tendo isso posto, a teologia paulina e suas comunidades também apresentam características marcadamente anti-imperiais. Ao longo do corpus paulino, há uma série de termos utilizados que, no contexto romano, possuíam conotações políticas. Em sua primeira epístola aos tessalonicenses (4.15-17), Paulo emprega três palavras-chave carregadas de significados imperiais: apántesis, parousia e kyrios.
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Ao utilizar o termo apántesis em referência a Jesus, Paulo alude a um costume cívico romano muito conhecido. Era prática comum que, ao saberem da chegada de uma autoridade real à cidade, os cidadãos enviassem uma delegação para encontrar essa autoridade no caminho e acompanhá-la com honras até a entrada.
Quando Paulo afirma que os cristãos irão “para o encontro do Senhor nos ares” (4:17), ele está aplicando esse costume à figura de Cristo em oposição ao imperador, indicando que, no desfecho da história, Jesus, e não César, será recepcionado como o verdadeiro governante do Universo.
Na mesma perícope, Paulo emprega o termo parousia (vinda), usado no contexto greco-romano para designar a visita oficial de um rei ou imperador a uma província ou cidade. Ao se referir à parousia de Jesus, Paulo está subvertendo essa linguagem imperial ao transferir para Cristo a glória e o status que eram tradicionalmente reservados a César.
O uso do termo kyrios (senhor) por Paulo possui implicações ainda mais contundentes. Na era imperial romana, esse título era atribuído ao imperador com um peso político profundo: ele era o kyrios dos seus súditos, o patrono supremo e a autoridade máxima sobre o Universo. César era reconhecido como “senhor” não apenas em questões políticas, mas em dimensões até mesmo divinas. Ao aplicar esse termo a Jesus, Paulo está afirmando que o verdadeiro Senhor do Universo é Jesus, e não César.
Em I Tessalonicenses 5.3, Paulo menciona a expressão “paz e segurança” (pax et securitas), que figurava como um dos slogans centrais da propaganda imperial romana. Essa expressão resumia um dos aspectos da ideologia imperial: a de que, por meio da dominação romana – sobretudo sob a regência dos césares e, em especial, de Augusto – fora instaurada uma era de estabilidade e ordem para todo o mundo conhecido, a famosa Pax Romana. Essa narrativa política apresentava-se como uma espécie de escatologia imperial, na qual o Império se via como responsável por inaugurar a “idade de ouro”, uma era messiânica inaugurada pelos imperadores. Essa visão escatológica, no entanto, se opunha drasticamente à perspectiva cristã, segundo a qual a verdadeira paz e segurança somente serão plenamente estabelecidas com a parousia de Jesus.
Em consonância com essa subversão, há uma inscrição arqueológica significativa encontrada em Priene, datada do primeiro século, que fornece uma evidência clara da linguagem de poder imperial. Nela, o imperador Augusto é chamado de soter (salvador). Notavelmente, esse mesmo termo foi utilizado repetidamente por Paulo em suas epístolas para se referir a Jesus. Novamente, o apóstolo contrapõe a teologia imperial ao reivindicar para Cristo títulos que o império designava a César.
Em sua epístola aos filipenses, Paulo os chama de “cidadãos dos céus” (3.20). Essa expressão tem forte ressonância no contexto político da cidade. Filipos constituía-se como uma colônia romana formada por veteranos de guerra. Era uma “pequena Roma” onde o culto ao imperador fazia parte da lealdade cívica. Ao aplicar essa terminologia aos filipenses, Paulo está direcionando a lealdade dos cristãos a Cristo em detrimento de César.
Nijay Gupta, em suas obras Paulo e a Linguagem da Fé e Strange Religion, argumenta que o termo pistis (fé) era comumente empregado no contexto político-militar, com o significado predominante de lealdade e fidelidade. Desse modo, ao deixar de participar do culto imperial, os cristãos de origem gentílica estavam se rebelando contra a reivindicação divina e totalitária imperial.
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Finalmente, Paulo também confronta o sistema de patronagem do período, no qual os indivíduos faziam o bem esperando reconhecimento público, honra e reciprocidade em troca. No seio da comunidade cristã, a ética deveria ser distinta. Conforme argumenta John M. G. Barclay, em sua obra Paulo e o Dom, o serviço cristão deve ser a expressão amorosa da verdade da doação de Deus em Cristo.
Por conseguinte, ao comparar os fenômenos do primeiro século com o cenário contemporâneo, pode-se afirmar que a relação entre Cristianismo e Política encontra-se em crise e distante das Escrituras em várias expressões da Cristandade. Tal afastamento se evidencia no messianismo político com figuras populares e na quase deificação de personagens partidários por parte de seus adeptos. Ademais, a adesão e defesa, por parte de alguns cristãos, de atos violentos e revolucionários – como o incidente de 8 de janeiro – estão distantes da ética das comunidades e da teologia paulina.
A relação da Cristandade com as autoridades governamentais deve se expressar em respeito, fidelidade no pagamento de tributos e em um posicionamento público condizente com toda a revelação bíblica. A submissão cristã, no entanto, possui um limite claramente definido pelas Sagradas Escrituras. Sempre que os decretos governamentais divergirem das Escrituras – como nas questões do aborto ou da linguagem neutra –, os cristãos são chamados a permanecer fiéis ao Senhor, obedecendo às Sagradas Letras e se posicionando publicamente contra as pautas que contrariam os princípios cristãos e prejudicam a sociedade.
Davi Silva Bispo é professor de língua, teólogo e mestrando em estudos bíblicos e teológicos do Novo Testamento.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



