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Da tela ao cotidiano: a normalização da pornografia na cultura pop

A série de televisão espanhola, "Élite", explora conceitos e temas associados aos dramas da adolescência. (Foto: Divulgação/Zeta Ficción/Netflix)

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Podemos encontrá-la em nossos celulares, em shoppings, revistas, filmes e programas de TV. Em livros de romance ou em letras de músicas (e videoclipes). Em capas de álbuns. Em videogames, outdoors e camisetas... Muitos dos produtos ao nosso redor adquiriram uma característica distintiva — a hipersexualização — que reflete um processo gradual: a pornificação da cultura.

Os exemplos são muitos e variados. Fotos de Instagram de mulheres seminuas vendendo suplementos de ginástica, ou garotas que medem sua autoestima pelo número de pimentas que aparecem nos comentários. 

Pole dance, twerking ou aulas de dança erótica, cujo objetivo é trazer à tona a diva que existe em cada mulher. Professores do ensino fundamental e médio que largam seus empregos de ensino para criar conteúdo no OnlyFans.

Séries como Euphoria, Game of Thrones ou Elite, nas quais é comum ver pessoas nuas ou fazendo sexo. O fenômeno Wattpad da literatura erótica. Ou publicidade com claras conotações sexuais. A maioria dos millennials se lembrará da época em que meninos sem camisa esperavam do lado de fora das lojas Abercrombie & Fitch como um truque promocional.

Essa mudança cultural, caracterizada por uma sexualização progressiva, começou a ocorrer em meados da década de 1990 e tornou-se praticamente inevitável.

Como escreve a socióloga americana Gail Dines em seu ensaio "Pornland ", "a pornografia tornou-se tão profundamente integrada a todos os aspectos do nosso cotidiano — moda, publicidade, filmes, internet, música, revistas, televisão, videogames — que quase deixou de existir como algo separado da cultura dominante, algo 'lá fora'. Não precisamos mais recorrer à pornografia para obtê-la. Ela chega até nós, quer a queiramos ou tenhamos consciência dela."

Tantos corpos, tão pouca sensibilidade

Como explica à Aceprensa o psicólogo e sexólogo Alejandro Villena, diretor do projeto Piénsatelo Psicología, a pornificação da cultura consiste em "um bombardeio visual constante de estímulos sexuais, que leva à saturação e à subsequente dessensibilização ao sexo". 

Esta exposição transforma nossa maneira de entender a sexualidade, enquadrando-a em uma lógica de consumo e associando-a a uma visão reducionista que objetifica o outro. Em Pornland, Dines aponta como os jovens — especialmente as mulheres — não precisam mais assistir à pornografia para serem afetados por ela.

Imagens, representações e mensagens chegam até eles por meio da cultura pop. Além disso, se considerarmos que a pornificação da cultura começou em meados dos anos 1990, pode-se dizer que os jovens de hoje não vivenciaram um ambiente midiático e cultural que não enfatizasse a centralidade do sexo e da sexualidade na vida cotidiana. Em outras palavras, eles estão dessensibilizados, em parte porque não conhecem outra realidade.

Um discurso comum no mundo da arte sugere que a hipersexualização das mulheres não as objetifica, mas sim as empodera

Em 2004, o fotógrafo e diretor Timothy Greenfield-Sanders afirmou que a pornografia teve uma enorme influência na moda, e que a moda teve uma enorme influência nas mudanças culturais. 

Esse fato fica claro ao analisar as tendências de moda e beleza dos últimos anos, que incluem injeções e cirurgias para aumentar lábios, seios ou nádegas, bem como tendências em depilação e design de roupas — ou a falta delas —, todas com um objetivo claro: aumentar a atratividade e destacar as proezas sexuais.

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A armadilha do pós-feminismo

Os exemplos são femininos porque essa objetificação afeta, principalmente, embora não exclusivamente, mulheres. Há inúmeros casos na indústria musical. Há Rosalía e Karol G, duas cantoras com vozes fortes, que decidem aparecer nuas nas capas de seus respectivos álbuns. Há a tão comentada dança de Aitana ao ritmo de "Miamor". Há as letras da própria música urbana. Ou os ensaios fotográficos nus em revistas, como o de Lady Gaga para a V Magazine.

No entanto, como está sendo retratado, isso não é objetificação. Não é auto-objetificação, mas “empoderamento feminino e liberdade sexual”. 

“Acho que essa tem sido uma das grandes estratégias de marketing que a pornificação alcançou: associar instrumentalização e objetificação à liberdade sexual”, conta Villena. “Quanto mais você mostra, melhor; quanto mais você se instrumentaliza, melhor. Quando, na realidade, tudo o que isso consegue é diminuir a liberdade de uma pessoa.”

É fato que liberdade tem sido confundida com hipersexualização, e nesse contexto, as mulheres perdem e a indústria ganha, pois legitima um modelo de sexualidade em que as mulheres são reduzidas a objetos de consumo.

"A pornografia transformou as mulheres em escravas do sistema. Em vez de priorizar seu valor como indivíduos, ou seu valor artístico ou intelectual, elas são forçadas a se despir para ter valor", comenta Villena.

A cultura tem uma tremenda capacidade de transformação social, pois gera expectativas e projeções de vida. Pode-se dizer que nossa época é caracterizada por jovens que chegam à idade adulta internalizando um fluxo constante de representações hipersexualizadas da mulher na cultura contemporânea. Considerando a representação atual da mulher, a expectativa é que ela se vista de forma provocativa e esteja sempre "pronta" para o sexo. 

Além disso, esse tipo de comportamento foi amenizado. "Agora, as meninas do OnlyFans são chamadas de criadoras de conteúdo, e a pornografia é chamada de filmes eróticos adultos. Difundiu-se uma narrativa social de que é algo inofensivo e sem problemas, mas é um modelo que coloca em risco a experiência de uma sexualidade saudável", diz Villena. 

Em uma entrevista de 2021, a socióloga franco-israelense Eva Illouz afirmou que a atratividade sexual havia se tornado um critério independente de avaliação em comparação com outros, e que isso se devia justamente a essa pornificação da cultura. 

"Desde a década de 1970, o capitalismo compreendeu que o mercado de bens materiais é limitado por definição — não se pode comprar cinco geladeiras de uma só vez — e que a única coisa que permite o consumo infinito é o corpo e as emoções. (...) Hoje, consumimos uns aos outros e exibimos o espetáculo dos nossos próprios corpos aos outros", afirmou Illouz.

E onde essa mercadoria é mais exposta e consumida? Nas redes sociais. 

O Cavalo de Tróia: mídias sociais

Como Sophie Gilbert escreve no The Atlantic, várias das plataformas digitais mais importantes da atualidade, como Facebook, YouTube e Google Imagens, foram inicialmente criadas por razões físicas, ou seja, o apelo do corpo feminino.

Um estudo mostrou que contas de influenciadores com maior número de seguidores no Instagram estavam associadas a uma estética mais pornográfica

Hoje, o Instagram e o TikTok, duas das plataformas de mídia social mais populares entre os jovens, tornaram-se as principais vitrines do corpo.

Um estudo da Universidade RMIT, que analisou os perfis do Instagram de vários influenciadores ao longo de quatro meses, descobriu que aqueles com o maior número de seguidores estavam associados a uma estética mais explicitamente pornográfica, chegando a usar perfis do Instagram para redirecionar usuários a sites como o OnlyFans. 

Como explica Villena, as mídias sociais — especificamente, o Instagram e o TikTok — tornaram-se "sites de micropornografia". 

"Essas plataformas sabem que, se introduzirem ou permitirem conteúdo sexual em seus canais de mídia social, retêm os usuários por mais tempo do que se lhes fosse mostrado um vídeo de física quântica." 

Além disso, em linha com o estudo da RMIT, ela comenta sobre quantos perfis do OnlyFans e canais pornográficos do Telegram anunciam com contas semi-explícitas para não serem bloqueados no Instagram ou no TikTok. "Na verdade, pesquisas nos dizem que, se meu filho adolescente acessa mais de três sites de mídia social, é muito mais provável que ele recorra à pornografia", observa. 

O impacto negativo do uso do Instagram na autoestima e na imagem corporal de meninas e mulheres têm recebido ampla cobertura.

Ao inundar meninas e mulheres com a mensagem de que seu atributo mais valioso é a atratividade sexual, ocorre um processo de minar progressivamente sua autoestima. Por outro lado, há também o efeito sobre meninos e homens.

Em 2024, o Wall Street Journal relatou que o Instagram recomendava regularmente vídeos sexuais para contas de adolescentes, fazendo isso poucos minutos após o primeiro login.

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Não consuma

Diante dessa situação, o que resta a fazer? “A primeira coisa é tomar consciência e questionar as coisas. Desenvolver um olhar crítico em relação às formas como nos comunicamos e aos conteúdos que consumimos que não são necessariamente normais ou apropriados e que legitimam um modelo indesejável de sexualidade”, diz Villena. 

“Isso pode ajudar a restaurar a sensibilidade, o que seria o segundo passo. Com base na minha liberdade individual, posso tentar não consumir esse conteúdo constantemente, parar de exigi-lo. Treinar meu algoritmo para não me redirecionar constantemente para conteúdo sexualizado e, em vez disso, me redirecionar para outras coisas que podem ter mais valor.” 

Cada vez mais meninos e meninas demonstram disposição para isso. De acordo com o estudo Teens and Screens 2024, publicado pela Universidade da Califórnia (UCLA), 63,5% dos jovens entrevistados (de 14 a 24 anos) queriam conteúdo focado em relacionamentos e amizades platônicas (contra 51,5% em 2023). Além disso, 62,4% dos entrevistados afirmaram que sexo e conteúdo sexual não eram necessários para avançar o enredo de programas de TV e filmes. Em 2023, esse número era de 47,5%.

No entanto, outro fator importante são os criadores de cultura. Escritores, roteiristas, fotógrafos e publicitários têm a responsabilidade cultural de tentar não reproduzir a pornificação em suas criações apenas com o propósito de vender.

À medida que essa pornificação da cultura avança, fica claro que precisamos considerar que tipo de sexualidade queremos como sociedade. 

Uma baseada no consumo e exploração de mulheres como objetos sexuais, ou uma baseada no cuidado com a sexualidade, que inclui empatia, reciprocidade e respeito ao outro.

©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: La pornificación de la cultura o por qué la estética porno está en todos lados

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