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| Foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados

Desde os anos 1970, o pensador mexicano Carlos Villagrán vem instigando a humanidade ao insistir na viabilidade da quadratura do círculo (em seu caso, tridimensional). O exotismo de seu intento reside na impossibilidade de se justapor duas figuras sabidamente incoadunáveis.

Por mais persuasivo que seja o silogismo que resume a situação fiscal do Brasil – nó górdio da crise que nos assola – ao dilema geométrico supracitado, deve-se refletir com parcimônia para não se ratificar o maniqueísmo dos incautos. A realidade é obviamente mais complexa: receitas há; cabe à sociedade brasileira decidir como recolhê-las e, muito mais relevante, como despendê-las.

A institucionalização de um limite legal para os gastos públicos aponta para o sentido correto. Trata-se, ao fim e ao cabo, de garantir a solvência intertemporal das contas do governo central. Mas a chamada “PEC do Teto” revela apenas parte do problema; reforça seu lado pernicioso ao mesmo tempo em que escamoteia uma janela de oportunidade histórica.

Um ajuste fiscal pode ser implementado, basicamente, de duas formas: aumento de receitas (tributárias ou extraordinárias) e/ou redução de despesas (medida esta que a literatura empírica e a administração de um condomínio demonstram ser muito mais profícua se comparada à primeira).

Sabe-se que patrocinar um ajuste verdadeiramente estrutural e que transgrida interesses injustamente estabelecidos é postura de audácia improvável no país do compadrio. Requerer-se-iam, além da acurácia técnica, apoio social e disposição política. A solução da crise atual não passa por outro itinerário, contudo, que não este: uma revolução tributária.

A solução da crise atual não passa por outro itinerário que não seja uma revolução tributária

No que toca às receitas, urge a adoção concomitante de duas medidas simples, porém não triviais: a primeira é a reformulação da política arrecadatória na qual se elimine o emaranhado de tributos indiretos em benefício de uma estrutura direta e progressiva. Não me refiro somente aos simbólicos impostos sobre herança, grandes fortunas e assemelhados praticados em países de clara tradição socialista, como os Estados Unidos, mas a comezinhos tributos sobre renda e patrimônio, tais como: lucros e dividendos (que não penalize diretamente o capital produtivo), uma tabela do IRPF menos assimétrica, um modelo de IPTU equilibrado e gradativo (que concorra para a melhor organização do espaço urbano e atenue a especulação imobiliária e o consequente processo de gentrificação), alíquotas crescentes de IPVA que desestimulem o consumo conspícuo e o uso indiscriminado de veículos particulares, entre tantos outros exemplos. A segunda medida é a redução clara e realista da carga tributária dos atuais 33% para algo em torno de 30% do PIB.

Assim sendo, como financiar as despesas do governo? A lógica reside, por sua vez, em outros dois aspectos: na moderada delimitação da atividade do Estado, não apenas no que concerne aos setores em que atua, mas também na mais onerosa consequência dessa onipresença desmedida: os elevados gastos com pessoal, uma das três maiores rubricas do orçamento federal. Não se propõe escorchar ainda mais o policial, o professor primário e o enfermeiro; antes, devem-se restringir as benesses de que gozam determinadas castas intocáveis da burocracia brasileira, como os sindicatos de toga, cujo auxílio-moradia recentemente conquistado onera o erário em aproximadamente R$ 1 bilhão ao ano.

Em segundo lugar, na qualificação do gasto público. Diante de receitas limitadas, devem-se alocar recursos em propósitos que justifiquem a atuação eminentemente estatal. Por mais acaciana que soe tal constatação, sabe-se que não raro a política pública ótima vai de encontro a lugares-comuns, como, por exemplo, o da escassez de dinheiro.

Tomem-se como base as duas áreas supostamente preservadas pela PEC 241. Em que pese o notório subfinanciamento da saúde pública no Brasil, faz-se imprescindível o redimensionamento do SUS. A focalização do atendimento médico nas camadas menos favorecidas da população seria de obviedade ululante se não fosse irreal.

O mesmo ocorre na educação. Alocar 10% do PIB nesse setor, como se ventila em determinados grupos ligados à causa, pode não ser necessariamente a política mais benfazeja. Não há país da OCDE que destine tamanha fatia do bolo à educação pública. Já o Brasil, que não se faz de rogado, dá-se o luxo de financiar o custoso ensino superior dos filhos de sua elite abastada, enquanto a Silvia, a moça que trabalha lá em casa, não tem creche para deixar os filhos quando sai para ganhar o pão.

O debate é, de fato, profundo e polêmico. Conquanto legitime um bom efeito sinalizador, a restrição dos gastos a um teto pós-fixado apenas tangenciará o cerne dos problemas fiscais do governo, mantendo intacta uma das mais flagrantes e silenciosas injustiças do país.

Por mais que o desejo de Villagrán, popularmente conhecido como Quico, tenha sido contemplado pela intrepidez de sua mãe, sabe-se que, infelizmente, na vida real nem existe bola quadrada nem o governo brasileiro é a Dona Florinda. De nada adianta forçar a circunferência para dentro do quadrilátero a ele circunscrita: suas áreas nunca serão hermeticamente sobrepostas. Ou se reformula o manicômio tributário brasileiro ou jamais se poderá cobrar o legítimo sacrifício alheio em nome da justeza fiscal.

Ivan Salomão é professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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