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O insurgente contra a sovietização da administração pública da União, contrabandeada através do verboso dialeto petista para dentro do Decreto 8.243, de 23 de maio, editado pela chefia do Poder Executivo federal, antes de discutir seus objetivos, deve antes examinar o alegado fundamento de validade. Em outras palavras, deve conferir se o prolator está usando honesta e corretamente das atribuições cujas fontes normativas evoca no respectivo preâmbulo. Do contrário, perderá o latim. Assim procedendo, seguramente concluirá que o texto do focalizado decreto e a malha legislativa em que se diz ancorar são justapostos em paralelo intervalado, tal qual os átomos de Demócrito.

Sucede que a signatária do malsinado ato exerceu atribuições que não lhe são conferidas pelo art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição; e pelo art. 3.º, caput, inciso I, e art. 17 da Lei n.º 10.683, de 28 de maio de 2003, como afirma. Demonstra-se.

O artigo 84 da Constituição especifica as competências do presidente da República. Seu inciso IV confere-lhe a atribuição de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. A conjunção "e", na frase, é aproximativa, de sorte que o vocábulo "decretos" o vincula à aplicação da lei a casos concretos. E aqui não se trata de regulamento, previsto na lei, tampouco de sua incidência tópica na ação executiva. Entendimento diverso importaria reconhecer a existência da categoria do decreto autônomo, estranho ao direito positivo brasileiro, conforme demonstra cabalmente o insigne publicista C. A. Bandeira de Mello em Elementos de Direito Administrativo (p. 59-60). O decreto carece deste suposto amparo legal.

À sua vez, alínea "a" do inciso VI, também ela do art. 84, confere-lhe a atribuição de dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação de órgãos públicos. O analista atento verificará que o subversivo decreto cria órgãos no sistema administrativo federal, ao arrepio da Carta Magna. É certo que o faz por via transversa, utilizando-se de fraude redacional quando, por exemplo, no art. 2.º, despreza o necessário verbo "criar" e emprega a expressão "considera-se", dando assim como existentes os órgãos, que enumera.

A cândida naturalidade com que são substituídos os referidos termos, nem sequer análogos, revela a filiação do escriba ao desconstrucionismo de Derrida e companhia, teoria em alta na casta intelectual dominante, para quem as palavras criam os conceitos. O teor do ditame mal-esconde a burla; vejamos:

"Art. 2.º Para os fins deste Decreto, considera-se:

II – conselho de políticas públicas – instância colegiada temática permanente (...);

III – comissão de políticas públicas – instância colegiada temática (...);

IV – conferência nacional – instância periódica de debate, de formulação e de avaliação sobre temas específicos e de interesse público (...);

V – ouvidoria pública federal – instância de controle e participação social responsável pelo tratamento das reclamações, solicitações, denúncias, sugestões e elogios relativos às políticas e aos serviços públicos (...);

VI – mesa de diálogo – mecanismo de debate e de negociação com a participação dos setores da sociedade civil e do governo (...);

VII – fórum interconselhos – mecanismo para o diálogo entre representantes dos conselhos e comissões de políticas públicas (...);

VIII – audiência pública – mecanismo participativo de caráter presencial, consultivo, aberto a qualquer interessado (...);

IX – consulta pública – mecanismo participativo, a se realizar em prazo definido, de caráter consultivo (...)."

Ora, ouvidoria, conselho, comissão, conferência e colegiados, enquanto instâncias de debate, de controle, de negociação, de diálogo, de participação presencial, não pairam incorpóreos na atmosfera, materializando-se tão logo convocados ao palácio pelo soberano do dia. Isso é pura fantasmagoria, não técnica legislativa. É grosseira fraude ao devido processo de formação da regra jurídica.

Mais adiante, no art. 10, onde são previstos novos conselhos e considerada a hipótese de reorganização dos já constituídos, escancara-se a natureza de entidades dotadas de atribuições e de funções estatais, acrescentados à administração federal.

E a instituição, pelo art. 19, da Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, "instância colegiada interministerial", situada na cúpula da Política Nacional de Participação Social (PNPS), evidentemente não será composta por espíritos de luz, nem vai permanecer em atitude contemplativa.

Apesar da solércia redacional, o decreto cria autênticos órgãos públicos e, portanto, além de não lograr o desejado abono constitucional, agride subrepticiamente o inciso XI do art. 48, que incumbe o Congresso Nacional de decidir sobre a criação de órgãos da administração pública da União, obviamente na forma do processo legislativo. Hostiliza também o art. 37, caput, pelo qual a administração da União se sujeita ao princípio da legalidade; e, de quebra, o art. 5.º, II, garantidor do direito de o cidadão fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, não de decreto.

Além do mais, é um escárnio a alusão à Lei 10.683 de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos ministérios, como se tal diploma, depois de transcorridos 11 anos, ainda dependesse de regulamentação. Dela, para legitimar o decreto, a soberana pinça, do art. 3.º, ocupado na enumeração das funções da Secretaria-Geral da Presidência da República, o inciso I, atinente ao relacionamento e articulação com as entidades da sociedade civil e criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo. A simples menção desse dispositivo à atividade relacional ou articuladora está longe de revestir-se do poder de autorizar a criação de entes próprios de gestão, visto como a própria Secretaria já é esse órgão. De outra parte, os meios de implementação de consulta e participação popular estão previstos no art. 14 da Constituição: plebiscito, referendo e iniciativa popular, dependentes de lei própria.

Quanto ao socorro pedido ao art. 17 da Lei Orgânica da Presidência da República, parece configurar erro de digitação do texto, porquanto o aludido preceito, dispondo sobre a Controladoria-Geral da União – um gigantesco ombudsman – é mais estranho aos fins colimados pelo decreto do que qualquer artigo do Código Penal.

Resulta inquestionável que o indigitado Decreto 8.423/14, por ter invadido o território exclusivo da lei, nasceu contaminado de nulidade. Mais: enquanto se apresenta em tudo semelhante à espúria espécie de decreto-lei, afronta diretamente a Constituição e, pois, se coloca sob o alcance processual da ação direta de inconstitucionalidade. Julgada e provida, ela suprimirá regras básicas do decreto, por isso que as cláusulas restantes serão igualmente extintas graças ao fenômeno da inconstitucionalidade consequencial ou por arrastamento, reconhecido pelo STF (cf. inciso III da ementa da ADI 2.895-AL, RTJ 194/534).

Esta providência se faz imperiosa em virtude da supremacia absoluta da Constituição da República. Curiosamente, porém, tanto a OAB, devotada ativista judicial, quanto a poderosa PGR, ademais de legitimadas pela própria Constituição, art. 103, V e VII, para defendê-la perante a Suprema Corte, ainda não se permitiram expungir da ordem jurídica positiva essa teratologia normativa (e politicamente ditatorial).

Reginaldo Fanchin, advogado, é ex-professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Curitiba.

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