Um dos principais efeitos da destruição da nossa civilização e da cultura verdadeiramente cristã é a falta de esperança. Mas isso não se deu por acaso, possui uma raiz filosófica profunda. Teorias como o nominalismo, o empirismo, o racionalismo, o kantismo, o pessimismo, o niilismo, a psicanálise e o existencialismo, difundiram em nossa sociedade – cada uma ao seu modo – uma profunda falta de esperança intelectual, moral, teológica e existencial.
A história é longa. Começa quando o homem, sua inteligência e sua vontade, passam a tomar o lugar da realidade e de Deus, causa dessa realidade. Com o nominalismo, o homem passou a defender a ideia de que as essências universais das coisas são apenas nomes (flactus vocis) produzidos pela inteligência. Com o empirismo, abandona-se, em filosofia – pensando-se em fazer “ciência” – as noções de causa formal e causa final. Ora, justamente aquelas que dão sentido às coisas e permitem que nossa inteligência as compreendam. O racionalismo e o kantismo, por seu lado, movimentos oriundos do Iluminismo francês e alemão, pretendem pôr a inteligência humana no centro do conhecimento, dando a ela o poder de “informar os conceitos”, de “criar sentido para a realidade”, de “categoricamente dizer o que é certo ou errado na moral”. Realizando assim uma “verdadeira revolução copernicana” na filosofia.
Nesta vida, segundo Santo Tomás, perder a esperança, é um dos pecados mais perigosos, pois por meio dela “evitamos o mal e somos levados a buscar o bem.
Com essas filosofias, a inteligência humana vai perdendo seu lugar no centro da personalidade e sua verdadeira luz, cabe dizer, luz que vem da realidade, da essência, das causas das coisas e de Deus, como a Verdadeira Luz, “Luz da luz” que “ilumina todo intelecto”, para dar lugar à vontade humana, que, ao seu modo, “manda na inteligência”, cria conceitos e fabrica as coisas. O homem deixa de ser o Homo sapiens e passa a ser o Homo faber.
Na medida em que o pensamento moderno vai avançando, os filósofos modernos foram percebendo que a inteligência humana – muito menos a vontade – não tem esse poder. Ela não pode criar voluntariamente a realidade, nem tem tal poder. Todavia, já era tarde. Mentes tão brilhantes, como um Edmund Husserl, entre outros, ao invés de darem um passo para trás e aceitar que o homem deve se submeter a realidade de si, sua natureza, e dos outros, os grandes pensadores do século XIX e início do século XX, caíram em teorias pessimistas, niilistas, angustiosas e suicidas. Caíram na falta de esperança. Ao ter seu plano frustrado de dominar a realidade, ao invés de concluírem acertadamente que é a realidade que domina e molda o homem, se viram amparados em seu próprio limite, seu nada, na falta de sentido, de razão, de bem e de porquê. Descreveram e aceitaram um homem “para a morte”, um “ser para a morte”, que, na verdade, não é capaz de “projetar verdadeiro sentido para si”, mas que se vê sozinho, sem sentido e esperança, perguntando a si mesmo “por que não me suicidar?”.
Por que isso aconteceu e acontece? Lembrando que nossa sociedade “comprou” muitas dessas ideias. É bonito ser niilista, pessimista! Porque já não acreditam mais na ordem e sentido que vem das coisas, na adequação da inteligência à realidade, na possibilidade do bem natural, muito menos sobrenatural. Olhando unicamente para si, as coisas perdem ordem, natureza e sentido. Qual a consequência disso? A perda da esperança de alcançar algum bem. Como? “Se é a minha própria inteligência e vontade que diz o que é o bem, como ter esperança de alcançá-lo, se já o possuo?”. Para essas escolas, o homem não pode ser feliz. Para esse pensamento moderno, o homem corre atrás de algo impossível de realizar ou alcançar. Contudo, a realidade não é assim.
Para a filosofia tomista, por outro lado, essa doutrina é muito perigosa e má. Nesta vida, segundo Santo Tomás, perder a esperança, é um dos pecados mais perigosos, pois por meio dela “evitamos o mal e somos levados a buscar o bem. Por onde, desaparecida ela, caímos desenfreadamente nos vícios e abandonam, é preciso dizer que a esperança é a causa eficiente da alegria. Com ela, já somos, de certa maneira, felizes, ainda que não tenhamos alcançado o bem esperado. Começamos a lutar por causa da esperança, como ensina o Doutor Comum. Mas, é uma luta alegre. Quem tem esperança, já é alegre, em certa medida, pela possibilidade de alcançar o bem no futuro. O bem que não depende de mim, mas que eu posso, sozinho, ou pela ajuda de outro, alcançar.
Um mundo sem esperança é um mundo triste. A esperança, conforme diz o Apóstolo Paulo, é a causa da alegria (Rm, 12, 12). Um mundo, uma ideia, uma vontade movida pela esperança, é um mundo, uma inteligência e uma vontade alegre de saída. Que forte essa afirmação! Pois ela significa que, sem esperança, não há alegria. Não há sentido, não há perspectiva de aperfeiçoamento, de realização e de vida feliz.
Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, no Tratado da Esperança, ensina que os condenados ao inferno, por exemplo, por se encontrarem entre dores e tristezas, demonstram que já não tem mais esperança, pois não tem mais a possibilidade de ter o bem e isso caracteriza sua tristeza. Ora, isso demonstra claramente que a esperança do bem futuro é a causa da alegria. Um mundo, uma ideia, uma vontade movida pela esperança, é um mundo, uma inteligência e uma vontade alegre de saída.
Para avançarmos de maneira ordenada, definamos o que é a esperança. De modo geral, a esperança (spes) é o apetite do bem futuro, difícil, mas, que consideramos como possível de ser alcançado, seja pelas nossas forças, seja pelas forças de outro. Segundo o Doutor Angélico, devemos considerar que existem dois tipos de esperança.
A esperança enquanto paixão: A paixão ou emoção da esperança, comum entre os homens e os animais irracionais, tem por objeto os bens sensíveis, árduos, futuros, mas possíveis de serem alcançados pelo animal ou pelo homem. Imaginemos dois exemplos: movido pela paixão da esperança, o cão que vê uma fêmea a certa distância, tem esperança de manter relações com ela no futuro, pois ainda não tem. Mas, precisa lutar contra outro cão para gozar dessa relação. Ou uma mãe de família, que vendo seu banheiro sujo, movida pela paixão da esperança, espera vê-lo limpo em breve, todavia, para tal, precisa se esforçar e lutar para tirar toda a sujeira das paredes, do box, da pia e do vaso.
A esperança enquanto virtude:A virtude da esperança é uma virtude teologal infundida por Deus na vontade, pela qual confiamos com plena certeza alcançar a vida eterna e os meios necessários para chegar a ela, apoiados no auxílio onipotente de Deus. O objeto da virtude teologal da esperança é o bem divino, ou seja, a gozar a Deus na vida eterna, esperando receber de Deus, todos os auxílios e graças necessárias para tal. Esse bem divino, que é o próprio Deus, transcende as nossas possibilidades de alcançá-lo, todavia, o próprio Deus nos ajudará, como ensina Santa Teresinha, na sua Pequena via. Eis a esperança, não como um sentimento, mas como uma virtude sobrenatural.
Percebam que há uma relação intrínseca entre o bem e a esperança. O homem não cria o bem, mas, conhece-o, ama-o e o espera alcançar. Isso já o alegra. Sem perspectiva do bem futuro, possível, não há esperança. Pois o bem se torna um fim, e esse fim move nossa vontade para que um dia possamos alcançá-lo. Pela paixão da esperança, o homem busca os bens que lhe são úteis do ponto de vista natural. Pela virtude da esperança o homem busca aqueles bens que lhe são úteis para a vida e a subsistência sobrenatural, em última instância, o próprio Deus, e os bens espirituais naturais, como a virtude e a verdade, enquanto nos conduzem a Deus.
A principal diferença entre a paixão da esperança e a virtude da esperança se dá no fato de que por meio daquela, o homem se julga capaz de alcançar, por suas próprias forças, o bem árduo futuro. Por meio desta, o bem apetecido extrapola totalmente as capacidades humanas, ficando o homem necessitado até seu último “fio de cabelo” da graça de Deus. Pois o bem que move a virtude da esperança é o bem sobrenatural. A esperança, tanto na ordem natural, como na ordem sobrenatural, é necessária para que o homem busque ser feliz e não sucumba no desespero ou na presunção.
O pai, a mãe, o filho, o médico, o professor, o filósofo, o sacerdote, o homem alegre e trabalhador, é aquele que tem esperança. Pois, por mais difícil que seja a obra, com esperança, o trabalho se torna “leve e o jugo suave” (Mt 11: 25-30). O esperançoso se alegra apenas com a possibilidade e o vislumbre do bem futuro. Pois acredita no bem. E isso é essencial para a esperança: acreditar no bem e na possibilidade de alcançá-lo. Isso causa a alegria.
Aqui faz-se importante definirmos o que é o bem. Podemos definir como a) aquilo que todos desejam e b) o bem é aquilo que aperfeiçoa a natureza de um ente. O bem do ente humano é aquilo que ele deseja para si mais que tudo, isto é, o seu sumo bem, o seu fim último, a felicidade. Deseja a felicidade imperfeita nesta vida, que se dá na verdade e no amor ao bem. Mas, sobretudo, a verdadeira felicidade, que é a visão da divina essência, que é o objeto próprio da virtude da esperança, que só se dará na vida eterna. Eis a sua perfeição psicológica, moral e ontológica. A perfeição humana.
A boa filosofia, a boa psicologia e a boa teologia devem afirmar constantemente a necessidade da esperança, sobretudo da virtude sobrenatural da esperança. Pois ela, por ser o princípio da felicidade, é responsável por sofrermos o que tivermos de sofrer, lutarmos o que tivermos que lutar, padecemos, para alcançar o bem, alegres e felizes. Na ordem natural, uma boa filosofia pode nos levar a buscarmos o bem, seja ele árduo ou não, pois não possuímos, nem criamos esse bem conforme a nossa própria vontade ou pensamento. Acreditar no contrário disso, é cair no delírio moderno, na frustração e na falta de esperança.
Na ordem sobrenatural, enquanto brasileiros, vivendo na “Terra de Santa Cruz”, devemos acreditar na esperança natural, mas, sobretudo, na esperança sobrenatural, virtude que vem de Deus, e que em nós é sustentada pela oração e pelos sacramentos recebidos de Deus por meio da Santa Igreja Católica. Acreditar na vida eterna, na santificação de nossas almas, na santificação das famílias, no bem da pátria, na propagação da verdade e da virtude, são, na ordem sobrenatural e na ordem natural, os motivos da verdadeira esperança e o princípio de toda boa obra trabalhosa, árdua, mas gratificante. Mesmo com nossas limitações e desordens, confiantes no auxílio sobrenatural de Deus e de Maria Santíssima, sua Mãe.
Devemos tomar muito cuidado! No mundo moderno não há esperança, porque tudo emana do homem, nada o transcende, nada o supera. Devemos fugir da desesperança do mundo moderno. Porém, como firmes combatentes, devemos iniciar o ano com uma verdadeira esperança de alcançarmos todos os bens árduos e difíceis. Mais um ano termina, todavia, convido mais uma vez os estudantes de filosofia clássica e de filosofia tomista (faço um convite também para aqueles que ainda não conhecem essa boa filosofia a conhecerem, e mais, que a levem para suas profissões e ciências) para redobrar suas forças, seus estudos e seus trabalhos. Com esperança o trabalho em prol da verdade será alegre e útil para nós e para os outros. Alimentamos em nós essa esperança e junto com ela a alegria que é seu efeito.
Willian Kalinowski, graduado, mestre e doutorando em Filosofia, é professor, membro pesquisador da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval; membro do Conselho Científico do Instituto De anima. É autor do livro “O intelecto e as virtudes intelectuais em Santo Tomás de Aquino”.
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