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Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante sua passagem pelo Senado, no último dia 19.
Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante sua passagem pelo Senado, no último dia 19.| Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A Operação Lava Jato está muito longe de representar uma simples atuação do Ministério Público e da Polícia Federal para resolver uma grande estratégia de assalto aos cofres públicos e ao dinheiro do povo, que culminou na responsabilização penal de pessoas que se imaginavam inalcançáveis pelo Direito. No Brasil, por conhecidas razões de ordem sociológica, parte representativa da população sempre se julgou acima da lei. Basta lembrar o modo como os conceitos weberianos foram introduzidos na discussão brasileira por Sérgio Buarque de Holanda. O patriarcalismo e o patrimonialismo, traços particulares da formação de nossa cultura, deram origem ao conceito buarqueano de “homem cordial”, o sujeito que, acostumado ao ambiente íntimo e de troca de favores da família, tinha extrema facilidade para transformar o espaço público em privado e, exatamente por não poder suportar a impessoalidade e a racionalidade, enxergava a lei como algo que deveria ser contornado mediante o auxílio daquele que está na administração pública ou no Judiciário para também se beneficiar.

A sociologia faz ver que a lei nunca foi óbice para o brasileiro fazer o que deseja e, mais do que isso, que a manipulação do Direito sempre foi compreendida como algo normal e natural por autoridades que supunham que, ao ocupar o espaço público, deveriam não só ajudar seus “amigos”, mas também tirar alguma vantagem de suas posições. Isso significa que a Lava Jato constitui a superação de uma cultura perversa que estava implantada havia séculos, na qual governantes gananciosos, administradores e juízes corruptos e facínoras travestidos de advogados sempre figuraram como atores de destaque. Mais claramente, a Lava Jato representa algo que não apenas põe fim à impunidade, mas também deixa ver que as coisas, na administração pública e na vida privada dos brasileiros, jamais serão as mesmas.

Porém, uma ruptura cultural e na aplicação da lei de tal proporção obviamente não poderia deixar de sofrer retaliação por parte dos sujeitos atingidos. Essa retaliação, não obstante tentada de várias formas, deu origem à trama de alguém que resolveu dedicar-se à divulgação de dados ilicitamente capturados por hackers. Trata-se, como informa a mídia, de pessoa mal falada nos Estados Unidos com igual intensidade pelos membros do Partido Democrata e pela imprensa, especialmente depois que teria começado a colaborar com um radical “supremacista branco”. Causa realmente espanto, assim, que as mensagens e ameaças veiculadas sejam levadas a sério.

Se alguma mensagem pode ser malvista, não há como esquecer que essas são frutos de uma conduta ilícita

Chega a ser intuitivo que, se não há como negar que a Lava Jato deu um basta na cultura do jeitinho e da corrupção desenfreada, e que o divulgador dos dados é pessoa malvista no cenário internacional, a presunção que deve existir é a de que tais dados não têm valor, muito menos jurídico – e não o contrário, como irresponsavelmente dizem outros. Atribuir presunção de credibilidade, em detrimento da autoridade do Poder Judiciário, a algo que todo e qualquer “mafioso” teria interesse em criar e que, para além disso, foi posto à luz por pessoa cuja credibilidade jornalística é questionável é algo que toca as raias do absurdo.

Fala-se, numa construção jurídica destituída de racionalidade, que as mensagens divulgadas revelam violação do devido processo legal. Usar a cláusula do devido processo legal como mantra é algo comum na linguagem de alguns advogados. Ocorre que “devido processo legal” é apenas o que respeita os direitos fundamentais processuais ou as garantias constitucionais da participação adequada das partes. Como é óbvio, não há qualquer problema em o juiz se comunicar com o procurador por Telegram ou meio que pertença ao gênero, até porque o uso de Skype, WhatsApp e outros aplicativos que colaboram para a facilitação da comunicação já faz parte da realidade do processo e da vida do juiz, dos procuradores e dos advogados, constituindo forma constantemente estimulada pelos especialistas, inclusive no plano internacional, para tornar concreta e possível a cooperação entre as partes processuais, aí evidentemente incluído o juiz. O que hoje é estranho para alguns é algo que sempre fez parte da cultura jurídica brasileira. Os advogados e os promotores nunca tiveram restrições para se comunicar com o juiz.

Lembre-se, aliás, que a relação entre o promotor e o juiz espelha a própria arquitetura das nossas salas de julgamento, institucionalizada no Plenário do STF, onde o procurador-geral da República se senta ao lado do presidente da corte, ambos em lado oposto ao espaço reservado ao advogado. É óbvio que isso revela uma cultura de desprestígio à advocacia e até mesmo de negação da isonomia. Mas o que agora importa é que isso é assim desde que os tribunais são por aqui conhecidos.

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É realmente curioso que aquele que está a estimular um ilícito contra o Estado brasileiro, violando a autoridade do Poder Judiciário para beneficiar os interessados na destruição na tutela da legalidade, não foi capaz de revelar nada que pudesse comprometer a imparcialidade do juiz, como seria, por exemplo, uma mensagem em que o juiz pedisse ao procurador que falsificasse a prova, confessando que fingiria não ver a ilegalidade. Ora, as informações que chegaram ao meu conhecimento fazem ver o inverso: o juiz revela preocupação com a lisura dos atos processuais, demonstrando que não iria aceitar conduta que pudesse estar em desconformidade com a lei e com os padrões do processo. A única comunicação que, quando mal compreendida, poderia causar alguma preocupação (o juiz estaria sugerindo uma testemunha) nada mais é do que forma de repasse de uma “notícia-crime”. Diante das proporções da Operação Lava Jato, isso certamente deveria ocorrer com grande frequência. De mais a mais, um advogado que atuou em vários casos da operação recentemente veio à imprensa para informar que nunca viu qualquer sinal de parcialidade, esclarecendo que o então juiz Sergio Moro frequentemente decidia contra o Ministério Público, além de tê-lo recebido sempre em seu gabinete para dialogar e despachar.

Por fim – last but not least –, se alguma mensagem pode ser malvista, não há como esquecer que essas são frutos de uma conduta ilícita estimulada por pessoa que não goza da credibilidade da imprensa internacional. Para ser possível descer a detalhes no presente instante, antes seria imprescindível a verificação e a comprovação da autenticidade do conteúdo das comunicações. Portanto, os textos revelados a partir da conduta ilícita que atacou o Estado de Direito brasileiro são completamente ineficazes para desacreditar o que de melhor aconteceu nos últimos séculos da história deste país tão sacrificado pela corrupção e pela falta de idoneidade das autoridades públicas.

Luiz Guilherme Marinoni é professor titular da UFPR, com pós-doutorado na Università degli Studi di Milano e na Columbia University.

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