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O Direito Penal da Nova República: uma religião civil judicial?

O Direito Penal virou trincheira ideológica: moralismo seletivo, criminalização política e um Judiciário que escolhe seus próprios dogmas. (Foto: Katrin Bolovtsova/Pexels)

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Muito se fala da crise econômica e fiscal do Brasil, mas talvez a parte mais deteriorada de nossa nação seja o seu sistema de justiça criminal, e do Direito Penal, dentro e através dos quais travamos uma dispendiosa, longa e sangrenta batalha política. Há fronts onde ela é mais intensa, tais como o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo, mas não faltam trincheiras em cada canto do país. Alguns diriam que é uma guerra civil por outros meios.

Distraídos pela política do dia, os brasileiros entraram em choque ao descobrir que, além do embrião de Polícia Política instalado na DIP da Polícia Federal em Brasília, temos também uma polícia de costumes. Sim, tal qual o lindo, mas muito bombardeado Irã, temos um órgão governamental dedicado a implementar os padrões sociais aceitáveis de conduta. Não a moral islâmica xiita dos Aiatolás, mas o moralismo de uma religião civil que não poupa esforços para substituir o cristianismo no coração do nosso povo. Sem podermos nos aprofundar em grandes estudos teológicos, vamos pular para o novo Direito que emana dessa revolução, digo religião, digo Constituição.

Sim, tal qual o lindo, mas muito bombardeado Irã, temos um órgão governamental dedicado a implementar os padrões sociais aceitáveis de conduta

Nele, a lei sagrada é muito diferente. Por exemplo, ofender minorias é pior que matar, ainda que as vítimas de homicídio no Brasil sejam também as minorias. Amamos aos animais sobre todas as coisas, e quem os maltrata tem pena maior que quem bate em gente. A moral sexual é bastante complexa, mas vamos tentar resumir. Está autorizado que o traficante, digo varejista de drogas, tenha um harém de menores, só dá problema e capa de jornal se, além de estuprar e traficar, ele cometer violência doméstica.

Pode parecer estranho e inconveniente que o Direito Penal tenha de se focar nesses problemas, ao invés das dezenas de milhares de homicídios anuais, mas você é que está olhando as coisas pelo lado errado. Por sorte, em comparação com os criminosos antigos, os novos alvos do Ancien Nouveau Regime têm endereço fixo, emprego, declaram imposto de renda e, o melhor de tudo, não atiram quando a polícia chega à sua residência para cumprir mandados.

E as vantagens não terminam por aí. A investigação dos neocrimes é muito mais econômica e confortável que a antiga, para eles, claro. É que ela pode ser feita do conforto do ar-condicionado, diretamente na tela do computador. Um ofício para Meta, outro pra Apple, três prints de celular, um áudio e dois vídeos. Uma pitada de criatividade e pimba, está condenado o criminoso, digo indiciado o suspeito.

Mas as coisas não são tão fáceis quanto parecem. Ainda é preciso um processo para condenar os criminosos – talvez algo parecido baste, não sejamos perfeccionistas. No zeitgeist do minimalismo, nossos juristas resolveram simplificar e adotaram um estilo mais clean, roots. De tanto falar da inquisição, acabaram curiosamente tanto adotando suas piores práticas quanto jogando fora suas melhores inovações.

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Trouxemos de volta o juiz inquisidor, e ao mesmo tempo os métodos primitivos que ele substituíra, ordálios através dos quais só a intervenção divina exonerava o acusado. Ou seria o Direito Penal Consumerista, com inversão do ônus e limitação dos meios de prova. Quem se importa? A festa do Direito Penal Democrático é open bar e só está começando.

Se estiver perdendo a graça, a gente pede pra descer uma dose mais forte de punitivismo doido. Pode ser um racismo recreativo, aprovado unanimemente pelo Congresso, ou um legislado pelo Supremo, que é pra deixar qualquer advogado pancado, e os humoristas reclusos por no mínimo 8 anos.

Agora, uma viagem gringa mesmo é acompanhar a jurisprudência constitucional alemã e descobrir que por lá estão liberados tanto o partido neonazista “Die Heimat”, quanto a revista de “extrema” direita Compact, em nome da proteção democrática à liberdade de expressão e associação. O muro de Berlim não caiu; tal como Mengele, veio morrer no Brasil.

Bernardo Weaver é advogado e mestre em Direito Penal pela Universidade de Harvard.

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