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Meu nome é Iguaçu. Dizem os humanos, aqui onde inicio minha trajetória, que sou limite intermunicipal entre Curitiba e São José dos Pinhais. Parece que também já ouvi falar que divido outras cidades e até um estado ao longo da minha extensão. Na verdade, esses nomes são novos para mim. Sou muito mais antigo que essas bobagens que escuto agora. Antes, estava acostumado a ouvir elogios sobre as minhas águas, sobre seres que em mim habitavam e nas minhas margens, no meu entorno. Ai, que saudade deles! Que fim levaram?

Faço parte do elo entre as gerações do planeta, integro um dos mais valiosos e fantásticos ciclos de vida: o da água. Aliás, conheço seres que são 75% de água; eu sou 100%. Não sei se isso é sorte ou se é azar. A água, minha composição inicial, não para. Ela está em permanente transição. Ora evapora, ora condensa, ora sublima. Sublime missão possuo de transportá-la no seu estado mais visível, o líquido, aos seres que de mim dependem. Faço ruídos, crio e mantenho vida. Conheço os animais e me dou bem com eles – na verdade, com quase todos. Digo isso porque, de uns tempos para cá, não sei bem como explicar, passei a ser agredido de uma forma sem precedentes. Cheguei a achar que queriam me matar, quem sabe não seja isso o que planejam. Mas por quê? Teria eu feito algum mal? Deixei, será, de cumprir a tarefa que há milhares de anos (ou seriam milhões?) tenho feito sem reclamações e com muita satisfação?

De repente me vejo mais fraco, minhas nascentes não são tantas quantas foram há algum tempo. As que existem parecem mais fracas, custo a brotar da terra e o caminho anda mais tortuoso. Tenho muitos obstáculos novos, que não conhecia... E, eu que pensava já ter visto de tudo nesse tempo, hein? Dizem os falantes que é lixo, resíduo, mas será que eles não enxergam nem notam que eu preciso passar por ali? Sei não... Até a minha transparência perdi com o tempo, deve ser como acontece com a visão, a tal da catarata. Quem sabe seja isso mesmo! Ah, lembrei que sou conhecido e admirado ainda por outro tipo de catarata, na verdade cataratas, consideradas uma das sete novas maravilhas da natureza – paradoxal!

Lembro-me de ter ficado sabendo que há muito tempo as pessoas costumavam se concentrar perto das margens dos rios. Escolhiam essa região porque os rios viabilizavam a vida, tinham esse significado, era algo sagrado, capaz de levar a regiões desérticas trechos paradisíacos, condições para o plantio justamente por causa do meu regime de cheias, do transporte. Foi nas águas de um rio que a fé encontrou simbolismo surgindo o batismo, ingressando para sempre no registro dos livros sagrados. Ainda hoje a água é vida nessa simbologia religiosa. Que tal lembrarmo-nos do crescente fértil dos rios Tigre, Eufrates e Nilo – região apontada como o inicio da colonização sedentária, levando à formação de vilas, das cidades.

O fato é que nós, rios, éramos considerados uma bênção, gozávamos de respeito e admiração por nações que dependiam diretamente da nossa existência, do nosso comportamento.

Hoje, depois de quase me sufocarem estreitando meu espaço, cercando-me, deixando meu leito quadrado, liso e até retificado em alguns casos, tornei-me muito mais rápido – nem consigo apreciar mais aquela paisagem de que tanto gosto. Fica a impressão de que querem se livrar depressa de mim. Sorte a minha que não existe limite de velocidade nem fiscalização disso por aqui, senão teria sido multado várias vezes! Mas não tenho culpa; apesar de ser o que sou, não mando em mim, apenas me desloco, ando, corro, quase paro, transporto quando querem ou quando precisam. Eu já fui até navegável!

Dessa agressão que contei há pouco, olha, não sei nem como explicar, mas nunca exalei tanto mau cheiro. A cidade deve ser boa para alguns, mas para mim não é. Só me trouxe sujeira, fui ficando escondido, foram me escondendo, me esquecendo. Vê, colocam vendas sobre mim em algumas partes onde há muito barulho. Acho que são chamadas pontes das ruas, estradas, rodovias. Também colocaram nas minhas margens umas construções de onde saem tubos que despejam em mim venenos, alguns que me deixam espumante, outros não aparecem, mas sinto que matam toda a vida que possuo, ferem minha alma.

Agora, queria muito a atenção das pessoas – de todas elas – para poder pedir desculpas pelo que acham que sou responsável, mas posso explicar o que acontece. Quando chove, sinto como se cada gota de chuva gerasse enorme tristeza, porque acaba sendo um dos momentos em que sou mais acusado por muita gente. Muitas dessas pessoas apareceram aqui depois de muito tempo que existo e ficaram bem perto de mim, invadiram meu espaço natural. Outras jogaram coisas no meu leito, como se eu fosse o que chamam de lixo. Não sou. Mas o pior é que isso tudo vai me enchendo, acumulando-se. Subo com muito mais facilidade quando vem a chuva. E eu, que sempre acabei saindo de dentro do meu leito principal quando choveu bastante, saio com muito mais facilidade agora.

Olha, não sei nem explicar como me sinto. Vejo o estrago que surge, mas não é por mal! Antes essas coisas que se perdem não estavam ali, nem deveriam, porque se pensassem antes de isso acontecer teriam percebido que subir até aquele ponto faz parte da minha natureza, é o meu leito secundário. Será que ninguém lembrou de que eu preciso de espaço nesses casos? Será que nem sequer se deram conta de que meu nome – "Iguassu" – foi-me dado porque alguns homens sábios de antigamente, que me conheciam e não reclamavam de mim, na língua deles, chamaram-me de "água grande", de muita água? Acho que não. Ninguém nem olha direito para mim mais, reclamam do meu cheiro, mas antes de essas pessoas estarem por aqui eu não tinha odor, não fazia mal aos outros, não jogavam coisas enormes dentro de mim, nem me limitavam em alguns pontos. Fizeram isso comigo, eu não pedi nada e nem sequer fui consultado. Sofro as consequências, os insultos, estou morrendo sem ajuda, sem atenção.

Se isso tudo não fosse um pensamento meu, enquanto calado passo pela vida das pessoas e sinto a minha vida passar, gostaria de dizer aos seres humanos, se boca tivesse, que agredir um rio é agredir a si mesmo, ir contra o princípio básico da vida, afastar-se dos preceitos da sustentabilidade ambiental. É comparável a um suicídio gradual e coletivo da espécie.

Se existe a inundação, o alagamento, a enxurrada, não é porque o rio é maldito como alguns insistem em dizer, mas porque o arbítrio humano, ao longo dos anos, decidiu pela autocondenação, matando a mim. O problema é que não falo e, se falasse, apenas alguns me ouviriam. Desses, poucos me escutariam para iniciar um raciocínio sobre o caminho sem volta escolhido pelos seres que se autointitularam racionais. Sabem, gostaria muito que este diálogo fosse possível. Quem sabe assim esse panorama pudesse ser revertido e, então, voltaríamos a conviver em paz e harmonia sem as acusações injustas que costumam impor a quem não pode falar para se defender. Enquanto isso, resta às minhas lágrimas se juntarem às águas que me formam sem que sejam percebidas pelos que as provocam.

Eduardo Gomes Pinheiro, capitão do Corpo de Bombeiros, mestre e doutorando em Gestão Urbana pela PUCPR e especialista em Emergências Ambientais, chefe do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (Ceped/PR) da Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil e da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).

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