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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Há muito se fala da urgência de se melhorar o estado da educação no Brasil, em termos que revelam claramente a perda da capacidade de narrar o que está acontecendo diante dos nossos olhos. A tragédia do ensino no Brasil será um caminho sem volta se não conseguirmos reconhecê-la e descrevê-la de maneira apropriada. O pensador austríaco Ivan Illich, há quase 50 anos, já havia notado um dos paradoxos que distinguiam a educação de todos os demais esforços humanos. Enquanto nos sistemas de transporte, na área militar e industrial, na informática e nos demais ramos da atividade humana o investimento dava resultados imediatos e evidentes, na educação ele resultou num sistema de ensino em que abundam problemas graves como indisciplina, criminalidade, tráfico de drogas e permissividade sexual.

O mesmo século 20 que viu a consolidação do sistema de ensino universal e obrigatório testemunhou também a severa queda na capacidade de proficiência em leitura. Donald Wood, no livro Post-Intellectualism and the Decline of Democracy, escrito em 1996, revela como a proficiência em leitura, nos Estados Unidos, estava em quase 90% no início do século 20 e, depois de todo o investimento em educação ao longo do último século, na passagem para o terceiro milênio cerca de 30% dos adultos eram totalmente ou funcionalmente analfabetos, com as faculdades e universidades decaindo drasticamente, nos primeiros anos, para um nível semelhante ao das últimas séries do antigo ensino fundamental.

Se a situação dos Estados Unidos – país que conta com as melhores universidades do planeta – é preocupante, o que dizer da realidade brasileira? Neste panorama de declínio mundial, o Brasil ocupa repetidamente as piores posições nos rankings internacionais. No último teste realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o Pisa 2015, o Brasil ocupou a 63.ª posição em Ciências, a 59.ª em leitura e a 66.ª colocação em Matemática, num universo de 72 nações.

E o que dizer das taxas de analfabetismo funcional? Segundo o Instituto Paulo Montenegro, em 2016 apenas 8% dos que atuavam no mercado de trabalho eram proficientes em leitura, o que corresponde a uma taxa de 92% de analfabetos funcionais. E mesmo entre aqueles que concluíram o ensino universitário ou que têm pós-graduação, mais da metade (55%) são analfabetos funcionais!

Durante a história humana, com exceção dos últimos dois séculos, nunca houve ensino obrigatório

Mais grave ainda que estes números catastróficos é a incapacidade de reconhecer e descrever esta situação. Políticos e educadores apontam a falta de investimentos e a necessidade de se ampliar o alcance da escola, com aumento dos anos de escolarização e preferência pelo estudo em turno integral. As teorias pedagógicas costumam representar o passado como uma etapa ascensional em que cada geração evolui em relação à anterior, sendo a última o ponto mais alto de toda a história humana. Contudo, a maioria desses planejadores nunca teve uma experiência autenticamente educativa, e usa o termo “educação” de maneira totalmente imprópria.

Durante a história humana, com exceção dos últimos dois séculos, nunca houve ensino obrigatório. Na Grécia Antiga, por exemplo, só os bons professores, aqueles que despertavam a admiração, conseguiam alunos; praticamente não havia alunos desinteressados porque ninguém era obrigado a frequentar compulsoriamente a escola. Era normal, portanto, que os alunos admirassem o professor e procurassem imitá-lo, e que este desejasse a realização plena daqueles. O rendimento dos alunos era muito alto e não se falava em crise do ensino antes do advento da escolarização obrigatória. Se esta fosse a regra, quem poderia ser considerado professor, no Brasil? Quais situações de ensino poderiam ser consideradas, ainda, educativas?

Todas as experiências de implantação dos sistemas de ensino obrigatórios foram obras de reformadores políticos e religiosos que queriam mudar a mentalidade da população evitando o caminho da persuasão dos adultos – árdua e incerta. Eles optaram por moldar as mentes ainda informes das crianças, que são psicologicamente vulneráveis e incapazes de compreender racionalmente o que está acontecendo.

Paulo Cruz: Uma luz para a educação (publicado em 12 de abril de 2018)

Leia também: Não à BNCC totalitária (artigo de Anamaria Camargo, publicado em 2 de julho de 2018)

Emblemático é o caso do estado norte-americano de Massachussets, no fim do século 19, em que 80% da população resistiu à escolarização compulsória até com armas; cidades foram assediadas pelo exército e crianças foram escoltadas para a escola. Desde então, a centralização e uniformização dos currículos não cessou de avançar, ao ponto de a Unesco declarar, em 1989, que “deveria haver um currículo universal, internacional e padronizado, estabelecido sob os auspícios das Nações Unidas”.

No século 20, a escola foi um espaço privilegiado em que foi testado um amplo programa de controle do comportamento. O filósofo e prêmio Nobel Bertrand Russell, membro da Câmara dos Lordes e muito influente nos altos círculos da Europa e dos Estados Unidos, desejava, no livro The Impact of Science on Society, de 1953, uma ditadura científica em que o governo fosse capaz de fazer qualquer um pensar qualquer coisa – como, por exemplo, que a neve é preta. O professor francês Pascal Bernardin, no livro Maquiavel Pedagogo, de 1995, revela como a Unesco discute há décadas como implantar técnicas de controle de conduta na educação e modificação de atitudes em escala internacional.

Os modernos sistemas de ensino não procuram desenvolver a inteligência, de modo a produzir um aluno independente. Como é possível “produzir” um aluno facilmente manipulado por planejadores sociais – ao ponto de poder ser padronizado em escala internacional – e que seja ao mesmo tempo inteligente? O aluno com a inteligência pouco desenvolvida não tem segurança suficiente para afirmar o que viu, e vai na onda do que todos estão dizendo. Só assim é possível fazer qualquer um pensar qualquer coisa. Não é de se estranhar, pois, que o nível da educação venha caindo anos após ano. Ivan Illich estava errado: o investimento em educação tem produzido exatamente os resultados esperados. Nós é que não estamos sabendo contar a história certa.

Fausto Zamboni, doutor em Letras, é professor de Língua e Literatura Italiana na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e autor de Contra a escola: ensaio sobre literatura, ensino e educação liberal.
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