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"Foi a destruição criativa que substituiu a madeira pelo ferro, a superstição pela ciência e a autocracia pela democracia". Deirdre McCloskey
A história da humanidade é essencialmente a história das ideias”. H. G. Wells
O País dos Cegos é um conto de H. G. Wells, de 1904, que descreve a aventura de Nunez, um montanhista que, ao escalar os Andes, sofre um acidente e desliza centenas de metros pela neve, até alcançar um vale escondido, habitado por uma sociedade de cegos. Ao entrar em contato com eles, tenta lhes explicar as virtudes de ter visão, mas, em vez de ser reconhecido como alguém de qualidades superiores, os habitantes do vale o acham delirante.
É impossível explicar o que são cores para quem nunca as viu, ou o céu e as estrelas. De noite, os habitantes do vale perceberam que o estranho tropeçava nas coisas e não conseguia fazer as tarefas mais simples, de forma que acreditaram que ele era deficiente físico e mental. Um dia, o conselho de anciãos se reuniu para saber como lidar com ele. Os seus delírios e sua falta de coordenação motora tinham uma origem, que eram os olhos, concluíram os anciões. Decidiram, então, extirpá-los para curá-lo de suas enfermidades. Um dia antes da operação, Nunez consegue encontrar uma saída do vale e volta à trilha que percorreu antes de deslizar.
A destruição criativa é o preço do progresso. É o motivo de termos smartphones em vez de orelhões de rua, laptops em vez de ábacos e vacinas em vez de sanguessugas. É um processo visto como caótico, desordenado, injusto e penoso. Entretanto, é indispensável
Este pequeno conto de H. G. Wells representa uma bela parábola econômica para nossas sociedades. Os habitantes cegos do vale não eram apenas fisicamente cegos; eram também intelectual e culturalmente alheios à possibilidade de um mundo além do que conheciam. Sua sociedade era estável, previsível e funcional. Não precisavam de visão, pois haviam se adaptado bem sem ela. As frequentes investidas de Nunez para explicar-lhes o conceito de enxergar eram recebidas com ceticismo e até hostilidade. Para eles, estas ideias não eram apenas inúteis, mas também perigosas, pois mencionavam a existência de mundos físicos e outras sociedades desconhecidas para eles, onde não conseguiriam se adaptar bem. É aqui que entra a noção de destruição criativa.
Destruição criativa é a ideia de que a inovação, a prosperidade e o desenvolvimento econômico substituem o status quo por novas formas de organização da sociedade. Inovações tipicamente destroem parte do capital anteriormente acumulado ao mudar processos produtivos e organizações, mas, ao fazê-lo, expandem a riqueza da sociedade. Por causa disso, a destruição criativa sempre encontra oposição de grupos que se beneficiam do status quo e que não querem perder sua fatia de mercado. O maior problema da destruição criativa é de economia política: se um determinado grupo tiver uma fatia grande de uma pizza econômica pequena e acreditar que sua fatia pode se reduzir se a pizza econômica crescer, então pode vetar o crescimento da pizza, caso tenha poder político para tal.
Ocorre que essa resistência à mudança é uma característica humana comum. Quantas vezes nos apegamos a tecnologias, hábitos ou sistemas ultrapassados apenas porque são familiares? A Varig, por exemplo, foi a maior e mais conhecida empresa de aviação comercial do Brasil e dominou o mercado de voos domésticos e internacionais entre 1950 e 1990, mas não conseguiu se adaptar às novas dinâmicas de mercado decorrentes de desregulamentação e da competição de empresas de baixo custo, como a Gol e a Azul, além de ter tomado péssimas decisões financeiras ao permitir uma rápida e explosiva acumulação de dívida. É como se a Varig estivesse vivendo no País dos Cegos, incapaz de perceber que seus métodos de fazer negócios se tornaram obsoletos e seriam substituídos por algo novo e melhor.
A destruição criativa é normalmente disruptiva. Empregos são perdidos, indústrias entram em colapso e modos e estilos de vida desaparecem. Alguns grupos na sociedade perdem com inovação, em particular aqueles que tinham uma fatia grande da pizza econômica e não foram hábeis em se adaptar às novas tecnologias e às novas condições de mercado. É a razão pela qual muitos shoppings locais estão sendo gradualmente abandonados e substituídos por armazéns de lojas virtuais e entregas de aplicativos de delivery, e é o motivo dos protestos de taxistas contra o Uber. Entretanto, com a destruição criativa, a sociedade como um todo melhora, ficando mais próspera e opulenta, pois novas oportunidades de negócios surgem, expandindo a atividade econômica e promovendo inclusão social — que é a entrada em mercados de pessoas com ideias inovadoras.
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No conto de H. G. Wells, Nunez chega a considerar perder seus próprios olhos para se adequar à sociedade dos cegos. Essa é uma metáfora sombria para o que acontece quando resistimos à mudança: mutilamos nosso potencial criativo. Se Elon Musk estivesse preso no vale do País dos Cegos, dificilmente conseguiria criar e inovar, que dirá não ter seus olhos extirpados.
Todos os grandes avanços da história foram impulsionados por pessoas que enxergavam o mundo de maneira diferente — e que muitas vezes foram consideradas insanas por isso. Steve Jobs imaginou um mundo onde todos pudessem carregar um computador no bolso. Elon Musk apostou nos carros elétricos, na internet via satélite e na possibilidade de colonizar Marte. Esses visionários não veem o mundo apenas como ele é; eles o veem como pode vir a ser.
Ocorre que não são apenas as histórias populares de visionários excêntricos que são relevantes, elas são apenas a ponta do iceberg. A história da humanidade é a história das ideias, e elas são geradas incessantemente por um vasto exército de pequenos inventores, artesãos, comerciantes e construtores, enfim, os empreendedores, que buscam mudar o mundo com suas criações e inovações, por menores que sejam. O processo de destruição criativa, que gera progresso e prosperidade, depende muito mais destas iniciativas do que do gerenciamento burocrático de grandes corporações e da intervenção e regulação de governos.
Nunez, no conto de H. G. Wells, é um desses visionários. Ele enxerga a beleza do vale — as montanhas cobertas de neve, as flores coloridas e o céu acima dele, mas também percebe suas limitações. Os moradores cegos vivem em um mundo sem artes, esportes e ciência. Para eles, a vida é muito pouco inspiradora. A visão de Nunez é uma virtude, mas é também um fardo. Ele não pode "desver" o que viu, nem convencer os moradores a enxergarem também.
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Esse é o paradoxo da destruição criativa: as pessoas que impulsionam o progresso muitas vezes são incompreendidas ou até mesmo desprezadas. Mas, sem elas, ainda estaríamos vivendo em cavernas, olhando para as paredes. Vasta evidência histórica indica que o mundo começou a prosperar, na Revolução Industrial, quando o homem comum, como o comerciante, o agricultor e o inventor, ou ainda a burguesia, de maneira geral, passou a ter seus direitos respeitados e ser tratado com dignidade.
Por que deveríamos endossar a destruição criativa, mesmo quando ela causa danos? Porque a estagnação é pior. Os moradores cegos no conto de Wells podem ter uma sociedade estável, mas também é uma sociedade estagnada. Eles pararam de evoluir, de imaginar, de sonhar. No nosso mundo, estagnação significa ficar para trás.
No Brasil, estagnação significa se acostumar e aceitar a elevada desigualdade social, alta criminalidade, corrupção, censura e insegurança jurídica. Significa perder empregos para países mais inovadores e aceitar uma diáspora de pessoas talentosas e de boa formação, significa não adotar tecnologias que salvam vidas e nos contentar com menos do que somos capazes de criar e de alcançar.
A destruição criativa é o preço do progresso. É o motivo de termos smartphones em vez de orelhões de rua, laptops em vez de ábacos e vacinas em vez de sanguessugas. É um processo visto como caótico, desordenado, injusto e penoso. Entretanto, é indispensável para o crescimento econômico e a melhoria da qualidade de vida.
No final do conto, Nunez não arranca seus olhos. Ele foge do vale, escolhendo as possibilidades incertas, mas ilimitadas, do mundo exterior em vez da vida confortável, mas confinada, do País dos Cegos. Essa é uma decisão que todos enfrentamos, seja como indivíduos, empresas ou sociedades. Devemos nos agarrar ao status quo, mesmo quando ele nos limita? Ou devemos abraçar a incerteza da mudança e da inovação, esperando que seus benefícios valham os riscos?
O País dos Cegos é também uma parábola de advertência. Lembra-nos de que o progresso depende da nossa disposição de enxergar diferente – de desafiar o status quo, de imaginar um futuro melhor e de aceitar a disrupção da destruição criativa. Se o Brasil decidir abraçá-la, verá despontar um exército de pequenos e grandes Elon Musks nacionais, que, com suas criações, irão trazer fortuna e prosperidade para nossa sociedade.
Ronald Hillbrecht é graduado em Economia, mestre em Teoria Econômica e PhD em Economia na University of Illinois at Urbana Champaign (EUA) . É membro fundador e ex-presidente do IDERS (Instituto de Direito e Economia do Rio Grande do Sul).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



