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O artista e compositor Rodrigo Amarante deu uma entrevista recentemente em que revelou um costume peculiar: ele carrega um rádio de pilha em suas viagens para ouvir as estações locais dos países e cidades por onde passa. Para ele, não há maneira mais fiel de se captar o espírito de um povo do que ouvindo suas músicas. A rádio local, segundo Amarante, funciona como uma espécie de manifestação do inconsciente coletivo. Ouvindo a trilha sonora cotidiana dos habitantes, é possível sentir algo da alma daquele povo: o que esperam, o que lamentam, o que sonham.
E se fizéssemos esse exercício no Brasil? Se ligássemos um rádio e nos dispuséssemos a ouvir nossas próprias frequências, que Brasil se revela quando nos escutamos? A pergunta não é trivial nem romântica, porque a música brasileira também reflete aquilo que somos e sentimos.
Desde quando era criança, eu estranhava alguns exageros das músicas brasileiras. Fui criado nos anos 90, e as músicas que rodavam pelo rádio iam de É o Tchan até Chitãozinho & Xororó. Tivemos também o grande sucesso dos Mamonas Assassinas nessa época — um fenômeno à parte, com seu humor escrachado e energia histérica. Tudo aquilo sempre me pareceu deslocado da vida real. Anos depois, noto que todas essas expressões ressaltam uma mesma característica que não mudou desde então. Gêneros que se consagraram depois como o funk ostentação, sertanejo universitário, o axé, o pagode — todos se movem dentro de um mesmo arco expressivo. Neles, ou a música é uma confissão melancólica e passiva diante da vida, ou é um delírio sensual e barulhento de quem se recusa a encarar a realidade. Nossa música está presa entre dois extremos: a resignação triste e a extravagância hedonista. Como se só pudéssemos viver como quem sofre ou como quem se esquece.
Exemplos desses traços na música brasileira não faltam: a MPB com sua melancolia triste, nossa música folclórica — muito derivada do fado português —, a extravagância do sertanejo universitário, do axé, do funk. Até mesmo o samba, nosso ritmo mais icônico, é uma curiosa união entre as duas características. O ritmo levemente dançante e a letra melancólica e triste consagrados na frase de Cartola: “O mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho”.
A música parece expressar uma tensão vital que procura resolução, que deseja a verdade. Em algum nível, nota-se o espaço da esperança em muitas dessas expressões. No Brasil, porém, há uma desistência. Nossa música não busca sair do labirinto. Ela se posiciona entre o carnaval e o velório
Muito da nossa MPB é um verdadeiro tratado de melancolia. É uma música que não levanta, que não consola — ela nos deixa ali, sentados com nossos pensamentos, ruminando a dor. Isso se repete no lamento do nosso folclore, das modinhas, das cantigas de roda que carregam um tom nostálgico, como se cantássemos sempre um passado que não volta mais. É a Tristeza do Jeca: “Lá no mato tudo é triste. Desde o jeito de falar. Pois o Jeca quando canta, dá vontade de chorar”. É a resignação em forma de canção, um lamento que aceita o sofrimento como parte da existência.
Do outro lado, temos a extravagância. O axé, o trio elétrico, o tecnobrega, os festivais populares abarrotados, o funk ostentação, o sertanejo universitário, etc. Tudo isso culmina em extravagância, na fuga para um mundo de excessos. Destaco aqui essas características da nossa música não como um juiz que quer condenar seus artistas. Amo muitas dessas canções, especialmente as do nosso folclore. E justamente porque as amo que presto atenção nelas e em como elas penetram em nossa alma. Há beleza em muito do que é criado na música brasileira. Mas essa criação surge a partir de uma experiência com o mundo. Essa experiência tipicamente brasileira precisa ser tomada pela nossa consciência. Precisamos entender a origem de nossos lamentos e exasperações.
Engana-se quem pensa que essa cosmovisão própria do Brasil é comum a outros povos. Há quem considere que essa oscilação entre resignação e extravagância é natural à música popular em qualquer lugar do mundo. Mas isso não se confirma em outros contextos culturais. A música folclórica italiana, por exemplo, mantém uma ligação com a terra, com a família e com a esperança. A irlandesa tem um ar militar que chama ao embate. A inglesa, mesmo nos seus movimentos mais transgressores com o rock'n'roll, olha para o passado com esperança e não com melancolia. É a consagrada letra de Paul McCartney: “I believe in yesterday”.
Em todos esses casos, a música parece expressar uma tensão vital que procura resolução, que deseja a verdade. Em algum nível, nota-se o espaço da esperança em muitas dessas expressões. No Brasil, porém, há uma desistência. Nossa música não busca sair do labirinto. Ela se posiciona entre o carnaval e o velório.
Essa resignação e essa extravagância são, na verdade, dois modos distintos de fugir da realidade. No primeiro, nos refugiamos na melancolia e no fatalismo: aceitamos a dor, mas sem nobreza — apenas como quem se senta à beira do caminho. No segundo, entregamo-nos à vertigem dos sentidos: é o mundo do barulho, das drogas, do exagero, do êxtase sem transcendência. Ambos são alienação. Em vez de enfrentarmos a realidade, criamos mundos paralelos — um em que tudo é triste demais para mudar, outro em que tudo é festivo demais para se pensar.
Essa alienação tem raízes profundas e se dá pela experiência fenomenológica de ser brasileiro. E aqui é preciso fazer um esforço de interpretação mais amplo, porque o que ouvimos na música — e, por sua vez, no teatro, no cinema, nas artes visuais, no entretenimento — é o eco de uma mesma experiência nacional de ser brasileiro. Duas forças estruturantes moldaram nossa experiência como povo: a geografia e o sistema político. Ambas formaram, ao longo do tempo, uma mentalidade coletiva marcada por uma sensação de impotência diante da realidade.
No campo da geografia, o escritor Vianna Moog oferece uma pista para nossa alienação. Em seu livro “Bandeirantes e Pioneiros”, ele compara a formação do Brasil com a dos Estados Unidos. Enquanto os americanos foram moldados pelo horizonte aberto das planícies marcados por elevações e montanhas, que convidam à expansão e à conquista, nós, brasileiros, fomos forjados pela selva.
A selva é um ambiente fechado, hostil, onde os perigos se escondem por todos os lados e onde a visão do horizonte é sempre bloqueada por alguma vegetação espessa. Mesmo nos morros altos, o olhar não alcança. Não há amplitude. E isso molda a mente. Segundo Moog, o brasileiro, diante da natureza, aprende a se colocar ou acima dela — tentando sobrepô-la com obras faraônicas como Brasília ou São Paulo — ou abaixo dela, submetendo-se passivamente à sua opressão, como nas comunidades isoladas do sertão ou da floresta. Em nenhum dos casos há uma relação harmoniosa. Essa experiência primária de cerco e clausura se transfere para a vida simbólica. Vivemos como quem está sempre encurralado.
No campo político temos outros agravantes. Raymundo Faoro, em sua obra Os Donos do Poder, descreve a formação do Estado brasileiro como dominada por um “estamento burocrático”: uma elite administrativa que controla os meios de poder sem representar verdadeiramente a população.
Essa estrutura não é democrática nem meritocrática. Ela é uma máquina de manutenção de si mesma — um Leviatã que pesa sobre o povo sem nunca se submeter ao seu controle. Desde o golpe republicano, o Brasil vive uma sucessão de rupturas, golpes, instabilidades e tentativas frustradas de organização. O Estado nunca se transformou naquele mecanismo supra-ideológico que garante a coesão da vida nacional. Essa sensação de que o poder está sempre em outro lugar — inalcançável, arbitrário e indiferente como Brasília isolada no centro do Brasil — cria no brasileiro uma passividade crônica. Mesmo a revolta mais recente, encarnada no bolsonarismo, termina absorvida pelo centrão: a mais perfeita expressão do estamento burocrático, disfarçado de pragmatismo.
É claro que seria injusto e reducionista atribuir toda a nossa produção cultural à experiência da selva e à estrutura do Estado. Há, sim, outras geografias e outros desdobramentos históricos que atestam uma experiência diferente. Existem brasileiros que romperam com essa prisão simbólica, que criaram a partir de um olhar elevado, ousado, reconciliado: um Santos Dumont, um Aleijadinho etc. Mas o fato é que essas exceções nunca se tornaram norma. Nunca se tornaram cultura. A mente brasileira, em seu movimento mais natural, ainda segue a mesma espiral: gira em torno de seus próprios traumas sem jamais transcendê-los. Vivemos tautologicamente.
Há alguns lampejos nesse processo. Temos Villa-Lobos: com sua fusão entre o erudito e o popular na música brasileira, ele criou um Brasil sinfônico, solar, universal. O padre José Maurício Nunes Garcia, ainda no século XVIII, compôs missas sublimes em plena Corte do Rio de Janeiro. Mais recentemente tivemos o movimento armorial capitaneado por Ariano Suassuna, que tentou reatar o fio perdido entre o sagrado, o épico e o popular. Há algumas iniciativas até hoje no Brasil que têm essa preocupação. Mas sinto que todos esses pertencem a outro Brasil. Um Brasil que não existe mais, apesar de manter-se vivo em fagulha em alguns corações.
A resposta para nossa alienação — para essa prisão entre a melancolia e o delírio — não está na política, nem na técnica, nem no marketing cultural. Está no espírito. Só a religião é capaz de propor uma transcendência que não seja evasão, mas elevação. Só a fé oferece uma escada real para subir do mundo concreto ao mundo metafísico, sem negar nenhum dos dois.
E, entre as religiões, o catolicismo é a única que carrega, em sua própria tradição, o dom de assimilar e redimir a cultura. A Igreja Católica nunca foi uma inimiga das festas populares — pelo contrário: sempre soube batizá-las. São Josemaría Escrivá dizia: “Urge recristianizar as festas e os costumes populares. Urge evitar que os espetáculos públicos se vejam nesta disjuntiva: ou piegas ou pagãos. Pede ao Senhor que haja quem trabalhe nessa tarefa urgente, a que podemos chamar ‘apostolado da diversão’”.
Mas essa missão é árdua. Antonio Carlos Villaça atesta em seu livro Pensamento Católico Brasileiro que o Brasil não formou uma cultura católica profunda até o final do século XIX. Seu livro é um tour de force sobre toda a manifestação intelectual católica brasileira. O autor explica que tivemos apenas expressões esparsas, individuais, nunca integradas à vida nacional. O século XX ensaiou um florescimento, mas foi abortado pelas convulsões políticas e sociais. A verdade é que o maior país católico do mundo, até hoje, não construiu uma cultura nacional genuinamente cristã.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



