A recente aprovação, por ampla maioria e com apoio da base do governo na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, do projeto que legaliza o jogo do bingo no país, traz a questão novamente ao debate público.
Para introduzir o tema é preciso lembrar que os bingos são jogos de azar e no território nacional tais atividades sempre se localizaram no limite entre a ilegalidade e a legalidade. No caso dos bingos, de suposta aparência inofensiva, por sua origem beneficente e enraizados culturalmente nas festas comunitárias, houve autorização do poder público durante certo tempo, sempre com restrições. Diante de inúmeros descaminhos, o bingo foi colocado na ilegalidade. Hoje, é contravenção penal.
A questão é complexa. É preciso examinar o conjunto das relações sociais que se articulam em torno de qualquer jogo, em que pesem as alegadas vantagens econômicas e sociais (circulação de riquezas, arrecadação de tributos, geração de empregos etc...) supervalorizadas pelos defensores dos bingos e das máquinas caça-níqueis.
A exploração econômica do jogo produz ambientes onde circulam grandes quantias de dinheiro, de forma momentânea e volátil, impossíveis de serem cobertos por qualquer instrumento jurídico que dê segurança tanto aos apostadores quanto ao Estado na sua atividade fiscalizadora, por mais que a lei pretenda assegurar o contrário.
Não bastasse a frouxidão dos laços jurídicos que permeia o ambiente do jogo, é necessário lembrar que a atividade se inscreve no plano das promessas e do desejo. São aspectos incontroláveis pelos sujeitos movidos pela ânsia de ganho fácil ou pela ilusão de um espaço magicamente criado para estimular e seduzir por meio de uma iluminação feérica, uma música inebriante, um consumo de bebidas facilitado e toda uma decoração que convida a esquecer as mazelas do cotidiano. A realidade é bem outra. O ramo aparentemente lucrativo e socialmente desejável esconde suas vinculações com outras atividades, quase sempre ilícitas, tais como, lavagem de dinheiro, prostituição e tráfico de drogas. No plano pessoal e existencial esse admirável mundo mágico não se sustenta para além das suas portas iluminadas: são muitas as tragédias familiares causadas pelos jogos de azar.
A exploração econômica do jogo do bingo se funda na boa fé e na expectativa de ganho, por parte dos usuários jogadores. Quanto à boa fé, a contrapartida para a suposta diversão, é uma perda certa de dinheiro, muitas vezes de recursos destinados às necessidades básicas. Quanto à expectativa de ganhos, o estímulo da repetição é ainda mais nefasto e, não raro, causa dependência. A dependência do jogo é um fato social concreto cujas consequências não se limitam ao usuário. O dano é familiar, é social. A questão envolve, portanto, interesse público e não apenas interesse econômico privado com aumento de arrecadação para o Estado como sustentam os defensores da liberação de jogos de azar.
Além disso, no estado democrático de direito, a legalidade deve ser orientada pelos valores constitucionais inscritos em princípios e regras, em especial os que dão efetividade jurídica e eficácia social à proteção da dignidade da pessoa humana. Por esse viés, uma eventual legalização do bingo será inconstitucional. Mais: no Brasil e no Paraná, os dados e estatísticas policiais sobre o conjunto das atividades ilícitas que gravitavam em torno dos bingos não podem ser desprezados. A sociedade e o Estado brasileiros, portanto, não podem ser presas fáceis de discursos enganadores como enganadoras são as luzes que entorpecem os sentidos dos apostadores.
Vera Grace Paranaguá Cunha, procuradora do estado do Paraná, é presidente da Apep (Associação dos Procuradores do Estado do Paraná) e diretora da Anape (Associação Nacional dos Procuradores de Estado).
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