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Passadas três décadas da promulgação da Constituição de 1988, marcante momento de hegemonia da inteligência, com construção coletiva de entendimento nacional e superação de diferenças, a comemoração vem sendo eclipsada pela polarização do momento eleitoral.

Vivíamos a chamada “década perdida”, de sucessivas crises nacionais e internacionais, de reiteradas decepções políticas e econômicas, com o mundo recém-desatrelado da Guerra Fria e a caminhar resoluto à globalização. Ainda sem a disseminação de computadores e de telefones celulares, a instantaneidade de informação e comunicações era só prenúncio do avanço tecnológico radical que viria, a subverter essências, valores e comportamentos, na corrosiva revolução silenciosa que parece desaguar no presente, a galvanizar e asfixiar nosso tempo.

Na América Latina, os anos 1980 foram de restauração paulatina de democracias, com o fim da longa noite das ditaduras e com países atônitos em busca de novos caminhos e de reconstrução da política; no mais, tudo valia pela reconquista da democracia, com inserção internacional e busca de prosperidade material, sem fronteiras e sem dogmas, de acordo com o espírito do tempo que se vivia.

A Constituição de 1988 representa, com particular ênfase, o Brasil que sempre haverá de ser

No Brasil, no entanto, o panorama era desolador: com o desvario da hiperinflação de três dígitos e estagnação econômica, de sucessivos planos com nomes de ministros sinistros e suas siglas indexadoras voláteis, a par de brutal dívida externa, havia constantes mudanças de moeda, com dinheiro carimbado, dinheiro velho e mesmo dinheiro novo. E, como na literatura fantástica, certa vez foi-se dormir em cruzeiros e acordou-se em reais.

No mais, terminado o milagre brasileiro, o aviltamento do campo gerava êxodo rural, com inchaço de cidades e ocupação desordenada do solo, com populações miseráveis a espalhar-se em periferias e grotões.

Nesse espectro de carências e incertezas, com a Assembleia Constituinte instalada em 1986, todos reivindicavam espaço e queriam ver-se representados na Lei Maior que se gestava. E foi em tal cenário polimorfo e desordenado que desenvolveram-se os trabalhos, a bem refletir todas as contradições, tendências e tensões de uma nação assombrosa: a natureza não dá saltos.

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A contar, porém, com a perspectiva do tempo, verifica-se que, a par de conquistas extraordinárias que o Brasil realizou em seguida, mercê também de sua surpreendente ordem constitucional, resta ainda grande caminho de construção legislativa, para que possa se concretizar o querer virtuoso da Carta de 1988. Não isenta de falhas de origem, com seu conteúdo excessivamente programático (já foram quase 100 emendas constitucionais, das mais diversas formas e abrangências), ainda muito há por fazer. Também o corpo presidencialista com roupas parlamentaristas do texto é vício insanável, mas não essencial, muito pouco a comparar com virtudes que o diploma contém. Basta lembrar os prodigiosos aportes, como na área social, ambiental e de organização dos poderes do Estado, criando e fortalecendo instituições vitais à democracia. Também vale lembrar a engenhosa fórmula de cláusulas pétreas em questões indisponíveis, como aquelas referentes à forma de Estado e a direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Conquista da cidadania, a compor e harmonizar interesses dos mais diversos, em decorrência da realidade sincrética e plural de seu povo múltiplo, a Constituição de 1988 representa, com particular ênfase, o Brasil que sempre haverá de ser, país marcado pela criatividade, generosidade e índole conciliadora.

Naquela quarta-feira, 5 de outubro de 1988, no plenário da Câmara Federal, enquanto ouvia-se a palavra forte do doutor Ulysses a encerrar a sessão, “Está promulgada a Constituição da liberdade!”, todas as forças políticas confraternizavam como assembleia plural e republicana; com conquistas e com derrotas, por certo, mas todos conscientes de ser a Constituição um compromisso maior de confiança e de pacificação. Não havia inimigos, só adversários. Apenas anoitecia em uma Brasília chuvosa de outubro, mas, no tempo histórico, amanhecia o novo Brasil. Meninos, eu vi.

Jorge Fontoura é professor e advogado.
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