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“Estado de Direito” é uma tradução do alemão Rechtsstaat, idealização kantiana semelhante à britânica do rule of law (regência do direito). Significa que: (1) todos, em especial os governantes, seus familiares e amigos, estão sujeitos às leise (2) que toda lei deve ser abstrata, tendo, portanto, aplicabilidade geral; não é apenas o que o rei, o juiz, ou o legislador determina. Mesmo o imperador Augusto tinha poderes limitados pelo ius e pelo Senado; e o Livro de Daniel relata que o Rei Dario foi incapaz de alterar um de seus decretos, pois isso constituiria “violação da Lei dos Medos-Persas, que é imutável”.
Nos séculos XI e XII, as Cartas de Liberdade promulgadas por reis ingleses, que em 1215 serviram de base para Magna Carta, estipulavam, por exemplo, que o acusado tivesse presunção de inocência e direito ao “devido processo legal”, e que o rei não podia mandar prender (“send against”) uma pessoa simplesmente por discordar dela; e a primeira dessas Cartas extinguiu o “direito” de prima nocte, que costumava legitimizar a defloração de uma noiva pelo senhor feudal, se ele a desejasse, antes do noivo.
No caso brasileiro, o arremedo é o Estado Democrático de Direito, em que, como na renomada 'justiça social' (na definição de Lênin: comunismo), o termo 'democrático' é inserido entre as duas palavras-chaves para depravar o conceito verdadeiro
No século XIII, Tomás de Aquino legou à civilização seu influente Tratado de Direito, elevando a justiça a um patamar superior. Para o famoso escolástico, o Direito é um campo de força racional ligado à consciência humana; paira acima de reis, legisladores e tribunais. Embora codificado em Direito positivo pela autoridade devidamente constituída, trata-se da exteriorização de um princípio universal de ordem imanente pelo qual as coisas se dirigem a um fim. Na vida em contiguidade, esse fim é o interesse geral, refletido no respeito à integridade física e psicológica de cada ser humano e, assim, no direito natural que cada ser tem e deve ter a fim de promover -- por esforço próprio, intercâmbio com seus concidadãos, e auxílio por eles prestado -- sua essência espiritual em liberdade contextual e, desse modo, também na contribuição que cada ser humano, seguindo as leis, pode fazer para a felicidade do próximo.
Disso se deduz que o direito natural (e, assim, o direito positivo derivado da concepção que o sustenta) é, por natureza, normativamente neutro: age como uma régua que nos permite medir os atos humanos pela apreensão das leis naturais e universais implantadas, como argumenta Kant, na própria estrutura de nossos corpos e mentes. Desse modo, o direito natural tem também um impacto educativo sobre a população, no sentido etimológico de educāre, pois é imprescindível à expressão do potencial de cada ser humano mediante um processo racional-afetivo que disciplina as energias do instinto, colocando-as (através do respeito a todos; do matrimônio; da vida em família etc.) a serviço desse processo de aperfeiçoamento de cada indivíduo e, assim, da sociedade. Eis aí, então, o verdadeiro significado da palavra social, refletido naquela ideia de Platão pela qual um Estado bem governado transforma-se, em efeito, numa confederação de amigos, aquilo que irrefletidamente chamamos de “comunidade”.
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Como se pode apreciar, nada disso tem relação a eleições, maiorias, partidos, ou candidatos. É aplicável a qualquer regime dedicado ao ideal implícito na frase memorável “o bem do povo e a felicidade geral da Nação”, de D. Pedro I, e no preceito “direito, liberdade e propriedade” defendido pelos liberais ingleses dos séculos XVII a XVIII; encontra-se, de fato, subjacente aos códigos legais que contribuíram para a evolução das civilizações. Como afirmaram os melhores escolásticos da Idade Média, o direito natural independe da existência de Deus, não sendo, portanto, uma ingerência da moral religiosa ou mesmo cultural no campo jurídico.
Assim, a lógica do Estado de Direito – derivada do reconhecimento racional da natureza, função e necessidades da vida em contiguidade – é suficientemente poderosa para compelir mesmo os regimes arbitrários a camuflarem seus crimes (e isentarem correligionários condenados) com arremedos distorcidos do Estado de Direito transformados em mera legalidade.
No caso brasileiro, o arremedo é o Estado Democrático de Direito, em que, como na renomada “justiça social” (na definição de Lênin: comunismo), o termo “democrático” é inserido entre as duas palavras-chaves para depravar o conceito verdadeiro, implantando a arbitrariedade do governo eleito ou de tribunais partidários como substituta do Rechtsstaat, rumo à democracia “relativa” do “centralismo democrático”, absurdo inerente ao socialismo. A esta “inevitabilidade” estamos sendo arrastados pelo processo partidário, por ordens executivas e por decisões do Supremo Tribunal Federal. Como evitar esse precipício é o trabalho a que devemos nos dedicar.
José Stelle é Ph.D. em Estudos Internacionais (Filosofia, Política e Economia) pela Universidade de Buckingham, Reino Unido. É também autor de “O estado de direito: constitucionalismo, democracia e o futuro da nação” (Chiado, 2019), arranjo de suas 18 palestras na Universidade Fudan, Xangai, China, em 2013; e de “Por uma nova carta: mensagem à nação brasileira” (Armada, 2022). Seu livro “O bom governo da república” será publicado no final deste ano.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



