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As informações sobre novos grupamentos sem terra se organizando no Sudoeste do Paraná permitem resgatar uma história recente na qual o maior remanescente contínuo de floresta com araucária bem conservada ainda existente, com mais de 25 mil hectares, foi completamente destruído, justamente, para dar lugar a um assentamento.

A proteção dessa grande porção de terras conservadas, próxima ao Parque Nacional do Iguaçu, era de responsabilidade legal da empresa Araupel. O Decreto da Mata Atlântica não permitia o uso convencional da área natural, sendo taxativa a condição de mantê-la íntegra, por parte dos órgãos ambientais, estaduais e federais. Essa foi mais uma ocorrência de invasão com motivação de reforma agrária postulada numa área bem conservada. Não foi exceção à regra, pois a mesma prática ocorre em muitos outros estados. É evidente, em todo o país, a condição distinta de defesa de áreas com "uso econômico", em comparação às salvaguardas que recebem as áreas naturais, públicas ou privadas. Terras improdutivas são, portanto, confundidas com áreas naturais remanescentes.

As áreas naturais também são fornecedoras de caça abundante durante o processo de desmatamento. A venda de madeira nativa é outra forma de fazer com que algum tipo de geração de renda, embora ilegal, possa manter os grupos invasores. O espaço que foi destruído há quase 20 anos, ainda mantinha uma fauna riquíssima, dentre as quais uma população de antas, dizimada em pouquíssimo tempo.

Relembrar a condição de implementação do chamado "maior assentamento da América Latina" não se limita a uma análise de sucesso ou insucesso no que se refere às condições socioeconômicas que envolveram o episódio. Preponderantemente constituiu-se de crime em que o Incra, IAP e Ibama agiram de forma conivente, com procedimentos ilegais flagrantes, optando por indenizar a empresa que perdeu suas áreas naturais e que tinha por obrigação legal protegê-las. Assim, mais um vasto trecho de terras antes bem conservadas desapareceu, dando espaço a um uso alternativo.

Apesar da invasão e dos constrangimentos decorrentes, a empresa afetada continuou existindo, com seu negócio mantido. O assentamento foi firmado, numa vitória dos sem terra de grande repercussão. O prejuízo moral ficou por conta dos três órgãos públicos que não tiveram nenhuma competência (e talvez nem intenção) para reverter o crime ambiental provocado pela ação. E os grandes perdedores fomos nós, cidadãos paranaenses e brasileiros, que abrimos mão da última área de floresta com araucária de dimensões significativas, sobrevivente da derrubada contínua que arrasou seus 200 mil quilômetros quadrados originais. Perdemos também, o que parece ser um fenômeno progressivo, a confiança nos órgãos públicos que teriam responsabilidades sobre uso e proteção do patrimônio natural e sobre a imposição do cumprimento da lei.

Se continuarmos flexíveis a quaisquer pressões, de ordem social ou econômica, rompendo o elo da legalidade para garantir espaços onde a natureza e seus serviços ambientais – como a água – ainda insistem em se manter, estaremos fadados a pagar uma conta coletiva cada vez maior, a ponto de não conseguirmos estabelecer se o dia de amanhã será plausível. O exemplo de São Paulo, nesses dias de crise de abastecimento de água sem precedentes, é emblemático.

Clóvis Borges, médico veterinário e mestre em Zoologia pela UFPR, é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).

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